terça-feira, 11 de dezembro de 2012

DANIELA PERES: A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA 20 ANOS DEPOIS

Por Elisa Bastos Araujo

O fetiche da exclusividade embebido por vociferações sensacionalistas. Esta é a combinação da reportagem realizada pela Rede Record de Televisão no último domingo (09/12) para o programa Domingo Espetacular, em decorrência da entrevista “exclusiva” realizada com Guilherme de Pádua, assassino confesso da atriz Daniela Peres. A vitimização, elemento tão impregnado nas narrativas da violência, é um fator bastante característico do discurso midiático em questão. Daniela, no entanto, não é mais a real vítima. Agora o seu algoz assume esta posição, diante das soluções que encontrou ao longo do seu histórico de vida.

A violência do crime, além da notoriedade da vítima, é um dos fatores que intensificaram a amplitude do caso. A narrativa apresentada pela reportagem utiliza artifícios engessados de construção da retratação da violência, por se tratar de um crime com bastante apelo popular. Além disso, a noção de realidade e ficção permaneceu confusa, por conta dos envolvidos no crime serem par romântico em De Corpo e Alma, novela de Glória Peres, mãe da vítima. A reportagem é construída quase que sob uma narrativa ficcional: o repórter literalmente narra o que aconteceu através de uma linguagem mais literária e menos jornalística.

Marcelo Rezende imposta sua voz na mais completa evidência da perniciosidade que reside nas marcas estereotipadas da construção imagética. O assassino de um dos crimes que talvez mais tenha impactado o Brasil, a ponto de ofuscar um impeachment de um presidente da república, vira vítima das suas próprias atitudes, quase um herói de si mesmo, alguém capaz de se superar e se arrepender, mesmo diante de algo tão hediondo.

Diante da estrutura jornalística podemos até afirmar que nada ali pode ser assim caracterizado. Não houve confronto de informações, todas as vozes do discurso evidenciam aquilo que Guilherme estava dizendo, quase que num esforço sobre-humano da emissora para se auto afirmar e ser credibilizada enquanto veículo jornalístico, a única, por ser exclusiva, a ser capaz de nos trazer a verdade até então desconhecida.

O aniversário da morte de Daniela, se é que assim se pode morbidamente chamar, foi lembrado da maneira mais baixa de estereótipos, máscaras e encenações (dos dois lados da entrevista). Não houve nem a tentativa de se falsear a tão prezada e impossível imparcialidade, já que o entrevistador, diante do entrevistado, concordava com o que lhe era dito, completava suas frases, quase o orientando sobre o que dizer. É como se o crime cometido por Guilherme tivesse sido algo justificável diante das suas palavras, só agora expostas. “O que os homossexuais têm a ver com isso, Marcelo?”, pergunta o entrevistado sobre um detalhe do processo criminal. “Nada.”, responde o entrevistador, numa inversão de papéis bastante conclusiva sobre todo o posicionamento da emissora diante da entrevista.

A quase justificativa para o crime apontada pelos realizadores da reportagem é cada vez mais evidenciada. Marcelo Rezende narra os acontecimentos e afirma que Paula esfaqueou Daniela para inventar um “falso álibi criado depois do ‘transe’ pós-crime”. O perito ainda diz que um homem, para matar, esfaqueia apenas com um ou dois golpes, mas uma mulher é a capaz de desferir vários golpes contra uma vítima, o que foi o caso. Esta afirmação praticamente isenta Guilherme de culpa, já que em momentos anteriores da entrevista, o especialista afirma que a morte de Daniela não foi por asfixia, quando Guilherme segurou Daniela em seus braços supostamente apartando a briga entre ela e sua ex-mulher; mas sim por golpes de tesoura.

A emissora apresenta a reportagem, em seu site, da seguinte forma: “Foram seis meses de negociação antes de revelar, pela primeira vez, detalhes que só foram mostrados no julgamento. Guilherme de Pádua conta detalhes do assassinato 20 anos depois do crime que parou o Brasil.”. Ué, não seria a “versão de Guilherme sobre o assassinato”? Desta forma é nítido que a Record põe o fato de ter a exclusividade tão acima de todo o resto que é como se tudo o que ele dissesse fosse toda a verdade.

Não é a existência, por si só, da entrevista que está sendo duramente criticada, é bom que se diga, mas sim a forma como conduziram aquelas verdades (ou inverdades). Onde estavam as perguntas confrontadoras para fazerem-no entrar em contradição, talvez? Parecem escapar os ganchos e brechas deixados por Guilherme. O entrevistador perde muitos momentos de interrompê-lo (ou de aproveitar pausas) e perguntar coisas fundamentais para o entendimento da história.

A edição também deu sua parcela de contribuição para essa construção tendenciosa. A música, os elementos gráficos, todos conduzem a narrativa de Guilherme como um filme de ação macabro ou um trash de terror. Até mesmo um levantamento de sobrenaturalidade foi feito: “imagens exclusivas das férias de Daniela, exatamente um ano antes de ter sido morta”. Quantas e quantas pessoas não fazem filmagens de suas férias todos os dias, hein?

O que não se pretende neste texto, por outro lado, é que diante de casos semelhantes o jornalista seja descortês. O que está sendo levantado aqui é a condução da verdade, de acordo com algo que lhe seja conveniente, isso sim é que nunca deve ser feito. Infelizmente foi o que vimos na reportagem da Record: tudo foi construído para que Guilherme de Pádua fosse perdoado, visto como alguém que superou as dificuldades, se entregou a Deus e enfrentou os seus erros. Pode até ser que seja verdade, mas essa não deve ser a única possibilidade de verdade exposta por um veículo de comunicação. Queremos que o jornalista apenas deixe as outras vozes do fato falarem por si só. Você, “jornalista”, é apenas um mediador, que deve prezar pela relativização das palavras na hora de recontar os fatos.