sexta-feira, 19 de julho de 2013

NA CULTURA DO ESFREGÃO PRECISAMOS DE MAIS SOFRIMENTO E MENOS ESTADO DE FELICIDADE


Por Danielle Brasiliense

Fui abordada por um repórter no centro do Rio em um dos dias de manifestações pela redução do preço da passagem dos ônibus. Com microfone sem bandeira e muito simpático, o jornalista me perguntou o que eu estava fazendo ali na Av. Rio Branco e o que estava achando da passeata sem violência. Eu respondi rápido gaguejando um pouco, tímida por estar dando aquela entrevista repentina, disse que com paz tudo ficava mais tranqüilo. Essa redundância que me ocorreu naquele momento se transformou em uma vinheta da Globo News sobre a cobertura das manifestações. Sem querer virei frase feita que reproduz uma ideia de que as coisas devem ser sempre ordenadas, limpas, higiênicas como pretendiam os iluministas do século XVIII,  os moradores do Leblon e todos que vivem por esta ordem social pré-escrita pelos ideais de civilização.
Interessante que nas primeiras edições desse vídeo exibido em diversos programas da Rede Globo, antes da minha fala tinha uma narrativa sobre a linda passeata, onde todos usavam branco. Só que no decorrer deste vídeo com outros depoimentos sobre a tal paz vem a parte da violência dos denominados vândalos que invadiram a Assembléia Legislativa naquela noite. Toda a passagem clean do vídeo termina no horror, na desordem. É como se tudo estivesse indo muito bem até que vândalos, sujos e asquerosos surgissem para atrapalhar aquela branquitude juvenil com rosas na mão, educada e comportada que queria apenas reclamar na rua os seus direitos. E tem sido assim: “um grupo pequeno, uma minoria de vândalos”. Desde que as manifestações começaram no mês de junho ouvimos esse tipo de frase nas diversas mídias e repetidas vezes também em declarações dos governantes. “Vândalos atrapalham o lindo movimento dos jovens”, dizem ainda eles repetidas vezes. O discurso do vandalismo em um primeiro momento se fez pronto para abafar os protestos da sociedade que foi à rua reivindicar seus direitos. Nenhuma novidade de enquadramento narrativo midiático, pois me parece que quando se trata a temática da violência, a mídia procura primordialmente demarcar territórios de higiene social dividindo assim, o mundo da ordem e da desordem. O limpo de um lado e o sujo do outro. Assim é muito fácil, não é verdade? Aqui estão os baderneiros e ali os de paz. Que construção textual fácil e ingênua sobre o mundo complexo em que vivemos!
Mas esse é o discurso elitista que conhecemos e ultrapassa séculos em nossa memória. Quando as operações de ordem são feitas nas favelas, fala-se em caça aos bandidos e como sabemos, sobra também para os outros moradores vistos como parte desta sujeira que no imaginário da “cultura do esfregão” precisa ser higienizada, anulada. Quando se trata de colocar ordem no asfalto, os impuros são os vândalos, baderneiros. Deste modo, a pergunta que não quer calar é: quando vamos entender que esse projeto civilizador de limpeza não nos cabe mais? Por favor, chega deste discurso que incentiva o pensamento da impureza e consequentemente da exclusão. Basta! Basta de achar que o mundo e a sociedade são apenas divididos em dois aspectos, o sujo e o limpo. Até quando vamos viver dos projetos executados pela psiquiatria do século XIX do excesso de ordem, quando se dizia que a loucura deveria ser exportada para longe da terra fértil, isolada em um barco, no qual a água límpida protegia a terra distante da impureza.
 Não adianta mais viver apenas pela defesa do sofrimento, às vezes, sofrer, inclusive, com pimenta nos olhos, gás lacrimogênio e porretes na cabeça é a solução. Defender-se do sofrimento significa gerar mais sofrimento e contribuir com discursos de ordem que enfatizam mais ainda o lugar da desordem. O que é desordem? Viver na favela, vaiar a polícia covarde, quebrar com revolta as vidraças dos prédios públicos, queimar pneus, fazer revolução contra uma maldita e arbitrária ordem? Parem de não querer sofrer, porque sofrimento é a alma do caos e sem o caos não há revolução, transformação e vida. Não se defendam do sofrimento e ensinem aos seus filhos que sofrer também é parte da vida. Chega dessa maluquice de felicidade a qualquer preço. Não ajuda e isso não é viver.
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terça-feira, 9 de julho de 2013

TEMPOS SEM MEDO

Por Pedro Barreto *

“O patrimônio da família – o medo – estava provisoriamente a salvo; medo dos ladrões, dos seqüestradores, dos estupradores, medo dos ventos, das enchentes, dos miseráveis, dos poderosos, dos fiscais, medo do terror, dos traficantes, dos negros, dos nordestinos, medo dos maloqueiros da favela, dos vendedores, dos cobradores, dos pregadores fanáticos, dos moto-boys que fumam maconha, dos ônibus lotados que despencam pela rua, medo da liberdade, medo da morte, medo da vida, medo do outro.”* *

Medo. Este é o sentimento “classemediano” dominante no mundo neoliberal capitalista, desde que os governos Reagan e Tachter impuseram ao mundo a cultura do “individualismo egoísta” (Reiner, 2007), no qual, “é preciso cuidar primeiro de si e depois de seu vizinho”, segundo afirmou a dama de ferro. No entanto, a frase que determinou as políticas penais neoliberais foi a do também ex-primeiro ministro britânico John Major, que sentenciava: “é preciso punir mais e compreender menos”. Estava batido o martelo.

O Brasil, este país abençoado pela natureza, mas historicamente abraçado à ideologia burguesa, incorporou os ideais neoliberais. E a sua grande mídia, por sua vez, prestou-se à tarefa de difundi-los do Oiapoque ao Chuí, plim-plim, sem cerimônias. Desta forma, nosso secular déficit sócio-econômico acentuou-se ainda mais com uma política penal retributiva (Garland, 2008), que pregava a retribuição do dano causado à vítima, em detrimento do infrator.

O clamor por mais lei e ordem tornou-se um mantra na grande mídia e na pauta das campanhas eleitorais. No Rio, a campanha à Prefeitura Municipal de 2008 foi antecedida pela série de reportagens “ilegal e daí?”, do jornal O Globo, que publicava cartas de leitores indignados com a população de rua, sujeira nas calçadas, vendedores ambulantes e outros. Assim que assumiu o posto, Eduardo Paes não titubeou e lançou a política do “Choque de Ordem”, prendendo usuários de crack compulsoriamente, apreendendo mercadorias de vendedores ambulantes, multando quem sujasse as ruas, e mesmo, pasmem, encaminhando para averiguação foliões que fossem flagrados urinando nas ruas durante os festejos momescos.

Megaeventos

Pronto, a cidade parecia regulada, monitorada, controlada por um poder público que não aceitaria mais “desordem”, “baderna”, “ilegalidades”. Atendendo a uma mesma lógica de gentrificação da cidade, o governador Sérgio Cabral Filho implantou, em novembro de 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), no Morro Santa Marta. Tudo muito bonito e arrumadinho, como os moradores de Botafogo e os turistas descolados gostam. Tanto que passaram a usufruir as maravilhas gastronômicas vendidas pelas moradoras da favela, a dançar até de manhã nos sambinhas moderninhos da “Laje Michael Jackson”, tudo por um precinho pra lá de salgado que os próprios moradores da comunidade não poderiam dispor. Enquanto isso, a polícia continuava a entrar nas casas a pontapés sem pedir licença, o tradicional baile funk havia sido proibido e muitos antigos residentes do morro tiveram que deixá-lo, devido aos altos custos cobrados pelas empresas legalizadas, que passaram a explorar serviços como tv a cabo, entrega de gás de cozinha, fornecimento de energia elétrica, entre outros. Mas nada disso tirou o ânimo da imprensa que não cessou de enaltecer os “benefícios trazidos pela UPP”. Só esqueceu-se de dizer a quem eles haviam sido concedidos.

Portanto, os governos municipal, estadual e federal uniram-se e lograram êxito em algo que há décadas não era visto: a unidade em torno de iniciativas comuns nas três esferas governamentais. Seria estranho, não estivéssemos vivendo uma fase singular em nossa história, quando receberemos, nos próximos anos, dois dos maiores megaeventos esportivos internacionais: a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, organizados por empresas multinacionais e patrocinados por grandes oligopólios privados que são, efetivamente, aqueles que lucrarão com tudo isso. Eventos esses que utilizarão bilhões de reais em recursos públicos na construção de estádios e demais obras de infraestrutura que deveriam servir como legado para a população. No entanto, o que se tem visto é um ataque às leis constitucionais brasileiras, à soberania nacional, imposição de um estado de sítio, comparável mesmo aos tempos do regime militar, higienização do espaço urbano - com remoções das populações mais pobres ao bel prazer de empreiteiras e dos organismos internacionais - superfaturamento de obras, e toda sorte de desvios de recursos públicos possível.

Manifestações populares

E aí, o que fez o brasileiro? Até hoje é difícil compreender o que está acontecendo nas ruas das cidades brasileiras nas recentes manifestações populares, que reivindicam uma miríade de coisas que reúne desde a “tarifa zero” até o “casamento gay”, passando pela paralisação da usina de Belo Monte, o “Fifa, go home” e a prisão dos mensaleiros. São os pobres? É a classe média? É a esquerda? É a direita? São os neonazistas? Impossível saber e, ao mesmo tempo, muito fácil supor que são todos esses juntos e misturados. O fato é que todos nos unimos devido ao nosso incurável sentimento de “ninguém aqui me faz de otário”, presente de maneira indelével no DNA tupiniquim, mas que aflorou desta vez, graças, em boa parte, às articulações via redes sociais, e à exacerbação da cara-de-pau da classe política que, descaradamente, resolveu admitir que não atende aos anseios de quem a elege, mas sim, aos caprichos de quem lhes financia as campanhas. De acordo com uma pesquisa do Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ, 75% das campanhas políticas mais caras saem vitoriosas das urnas. É o lema “pagou passou” elevado à instância política.

Então, como diria Gramsci, quando o aparelho coercitivo falha, o aparelho repressor atua. Trocando em miúdos, quando o “bla-bla-bla”, o “lero-lero”, o “vem cá meu nego” do Estado não cola mais, aí vêm a polícia e as forças militares e baixam o sarrafo. Foi o que aconteceu, só que desta vez, indiscriminadamente. Acostumada há mais de 200 anos a perseguir, bater, prender e matar negros e pobres nas favelas e periferias, a Polícia Militar estendeu seus “serviços” às classes média e alta, como já fizera durante os governos militares.

Violência que une

E então, fez-se a mágica: a força bruta do Estado, por meio de seu braço armado, ao invés de arrefecer os ânimos dos manifestantes, fez pulular e multiplicar nas ruas o número de indignados. Ainda que o tratamento dado pela polícia tenha sido bastante distinto, haja vista os dez mortos no Complexo da Maré e as inocentes balas de borracha e gases lançados contra os burgo-manifestantes, ou coxinhas, da Delfim Moreira, pobres e ricos passaram a dividir espaço nas passeatas. Ironicamente, a truculência estatal, que os diferenciava e que, de certa forma, historicamente, sempre foi reivindicada e utilizada pelas elites para a manutenção da segregação social no Brasil, ajudou a reduzir a distância entre Leblon e Maré e a formar uma grande massa, ou mesmo, a dar vida a um gigante (palavra batida, mas ainda pertinente) outrora adormecido, recém desperto e ainda abobalhado, mas já furioso. Mesmo que os rostos corados, bem-nutridos e cabelos escovados sejam maioria, o abismo entre as reivindicações das distintas classes sociais encurtou. Moradores da Rocinha e do Vidigal ocuparam o calçadão do nababesco Leblon para exigir a renúncia do governador, enquanto que estudantes e trabalhadores da zona sul deixaram em casa seus medos e preconceitos para tomar de assalto a Linha Vermelha e reivindicar punição aos meganhas criminosos da Maré.

Ao notar a inviabilidade de manutenção do discurso contrário ao uníssono popular, oriundo da viral articulação das redes sociais, que se expressou na massiva mobilização nas ruas de todo o país, o que fez a grande imprensa? O oráculo do pensamento “classemediano” brasileiro, então orientou seus adeptos: “meninos, manifestem-se pacificamente, mas sem vandalismo, sem bandeiras de partidos; cartazes, estes sim, contra o governo petista, os mensaleiros e contra a corrupção, combinado?”. E tome de vídeos, fotografias, editoriais, nos telejornais, diários e revistas semanais relatando a ação de “vândalos” contra as acuadas tropas policiais, coitadas, exibindo a atuação de “marginais” contra os nossos prédios públicos, tão bem cuidados e preservados, né não?

Questionamento das instituições

Será que está difícil perceber que trata-se de um questionamento – ainda que tardio - a instituições que há anos atuaram sem contestações no Brasil, como as violentas e brutais forças policiais, às mentirosas e manipuladoras empresas de comunicação, ao inescrupuloso Congresso Nacional, ao elitista e racista Poder Judiciário, ao sistema político que elege e mantém os representantes de nossa falaciosa democracia em seus cargos, exaurindo os recursos de nosso erário, legislando, julgando e executando em favor de interesses privados?

Algumas dúvidas ainda pairam no ar sobre os desdobramentos das manifestações. Terá êxito a campanha da grande imprensa para desqualificar os manifestantes e transformar toda a mobilização em uma mera marcha “anticorrupção” contra setores específicos do partido do governo, antecipando, oportunistamente, a campanha eleitoral midiática de 2014? Conseguirão os setores conservadores impor suas bandeiras aos movimentos e deixar tudo como era antes, no melhor modelo “façamos a revolução antes que o povo a faça”? Ou estaremos participando e assistindo a um momento de profunda transformação social, cultural e política em nosso país, em que as instituições e a própria democracia deverão se readequar a uma nova ordem que é - ao contrário daquela velha, viciosa e verticalizada - dinâmica, entremeada, participativa, múltipla e horizontalizada?

De todo modo, talvez o mais importante disso tudo sejam exatamente a mobilização da classe média, tradicionalmente acomodada e atemorizada; o debate no seio da sociedade, entre aqueles que se vangloriavam de não gostar de política; o amadurecimento político da população, há tempos distraída com “a melhor telenovela do mundo”, “o melhor futebol do mundo”, “o melhor samba”, “a melhor cerveja” e desacostumada a reflexões acerca dos rumos políticos de seu país; os questionamentos, as dúvidas e o consequente abalo de algumas estruturas já há muito tempo corroídas. Só faltava a vibração das ruas para estremecê-las.




* jornalista e doutorando em Comunicação pela ECO-UFRJ

**trecho do conto Pequenas distrações, de Gregório Bacic, disponível em http://manifestoplural.blogspot.com.br/2013/07/pequenas-distracoes.html




Referências:


GARLAND, David. A Cultura do Controle. Crime e ordem na sociedade contemporênea. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2008.

REINER, R. Law and Order: An honest citizen´s guide to crime and control. Cambridge, 2007.

domingo, 7 de julho de 2013

VIOLÊNCIA NA MARÉ: UMA PAUTA PARA O BRASIL

Por Marcio de Souza Castilho*

A operação policial ocorrida nos dias 24 e 25 de junho na comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, que resultou na morte de dez pessoas, demonstra a necessidade inadiável de repensar o papel das forças de segurança em favelas e periferias nas grandes cidades. A violência real e simbólica que se impõe nos territórios populares revela a forma desigual como o Estado percebe os cidadãos que compartilham o espaço urbano ao demarcar a fronteira entre “nós”, os que têm acesso às políticas e serviços que promovem o bem-estar social, e “os outros”, desprovidos de direitos. O ato ecumênico marcado para esta terça-feira, dia 2 de julho, na Avenida Brasil, em memória às vítimas da Nova Holanda, pode ser um passo importante para religar as duas pontas desse tecido social fragmentado no Rio de Janeiro.
A tarefa não é simples diante das representações sobre os espaços populares e uma construção histórica estigmatizada de seus moradores como “cidadãos de segunda classe”. Em um texto que discute a memória da violência estatal no Morro do Borel, antes das políticas de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), Mariana Cavalcanti observa que “a história da repressão nas favelas cariocas também é a história das representações do poder público sobre a favela”. No início do século XX, no período de urbanização do Rio de Janeiro no governo Pereira Passos (1902-1906), esses territórios eram identificados como lugares de disseminação de doenças. Depois, no fim dos anos 40,  vistos como locais de infiltração comunista. Desde o fim dos anos 70, temos a consolidação de uma dada visão do morro principalmente como espaço privilegiado da violência e da criminalidade. Em todos os períodos históricos, diferentes ações do poder público foram adotadas não propriamente no sentido de integração dos moradores no conjunto da organização social, mas sob o imperativo da ordem e da “civilidade” – ações higienistas, políticas de remoção e ocupações de forças militares.
Tais representações trazem como consequência medidas de contenção social e ajudam a explicar episódios de brutalidade policial e violação de direitos humanos, como a operação desencadeada na comunidade Nova Holanda, causando a morte de traficantes, moradores e um policial do Bope. Em muitos casos, os homicídios estão associados a autos de resistência, mas quem vive em favelas e periferias no país carrega na memória cenas de execução sumária, atingindo, sobretudo, jovens, negros, pobres e sem acesso ao sistema educacional. Estes representam esse “outro indesejado” que atravessa a história da formação urbana nas grandes cidades. São comunidades que vivem um estado de excepcionalidade cotidiana, permanente, próprio de regimes ditatoriais. É por esse motivo, como conclui Mariana em sua pesquisa sobre o Borel, cujas interpretações podem ser aplicadas no contexto de outros territórios populares, que não há um sentido de repressão na favela associada exclusivamente ao regime militar, mas uma “opressão contínua”.

Nas manifestações, o centro virou periferia

A mesma ideologia militarizada esteve presente na repressão aos protestos populares que eclodiram em junho, durante a Copa das Confederações: emprego indiscriminado da força estatal, revistas policiais longe de testemunhas para “plantar” provas contra estudantes, prisões arbitrárias e aleatórias. Nas últimas semanas, o centro virou periferia e, dentro dessa lógica, todos somos como as “classes perigosas” nas favelas, inimigos a serem combatidos. Após os fatos ocorridos na comunidade Nova Holanda, essa percepção ficou clara com os cartazes lembrando que a polícia que reprime a manifestação é a mesma que executa pessoas nos morros. A diferença está no potencial letal das armas utilizadas pela polícia no asfalto e na favela. Permanece, no entanto, a cultura autoritária e, muitas vezes, ilegítima dos aparelhos policiais. Por esse motivo, os manifestantes incorporaram também como bandeira a desmilitarização da polícia como projeto para uma só cidade, integrada e sem divisões de classe ou cor.
Mesmo em comunidades que receberam as Unidades de Polícia Pacificadora em áreas estratégicas para a realização de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro, a favela continua sendo vista como espaço a ser tratado pela polícia. Apesar de alguns avanços quanto à prestação de serviços públicos nesses locais, o projeto ainda reproduz uma lógica de controle das forças de segurança. Se as razões estão relacionadas às deficiências na formação policial que tende a associar criminalidade e pobreza, talvez seja uma questão para análise dos sociólogos. O que se percebe, contudo, é a ausência de um projeto que permita a participação coletiva, democrática e autônoma dos moradores no debate sobre os destinos dessas comunidades “pacificadas”. O poder público, que deve estar presente na favela não apenas com os seus “caveirões” (blindados), tem a tarefa de incentivar um processo para que eles possam se auto-organizar sem estar sob o jugo do poder do tráfico de drogas, mas também sem o controle exercido pelo poder das armas da polícia. Uma das principais plataformas políticas do atual governo do Estado, as UPPs vêm atendendo bem aos interesses de quem não mora exatamente nesses espaços populares.

O papel da mídia

Os meios de comunicação têm papel central nas representações sobre as regiões da cidade historicamente marginalizadas. Nota-se uma certa conivência de uma parte dos órgãos de imprensa tradicionais ou hegemônicos com a brutalidade policial nessas comunidades. O caso mais recente, porém longe de ser um caso isolado, teve repercussão a partir de uma declaração do “comentarista de segurança” das Organizações Globo, Rodrigo Pimentel, ex-policial do Bope, durante o protesto em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), no último dia 17 de junho. Ao criticar o uso de fuzis por parte de policiais para dispersar os manifestantes, Pimentel destacou que “é uma arma de guerra, uma arma de operação policial em comunidades e favelas; não é uma arma para ser usada em ambiente urbano”. Nesse raciocínio, favela não faz parte da área urbana, portanto, abusos, truculência e arbitrariedades são toleráveis.
Como não associar esse pensamento belicista ao recente episódio na favela da Coreia, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, alvo de uma operação com tiros disparados por policiais a bordo de um helicóptero? A ação para prender o traficante Matemático remete ao roteiro de filmes hollywoodianos de guerra, mas com a população civil real a mercê das rajadas de metralhadora.
Na cobertura das manifestações populares de junho, prevaleceram as cenas contundentes de depredação nas páginas de jornais e nas imagens “ao vivo” ou editadas dos telejornais. O noticiário também valorizou a versão das fontes oficiais e especialistas em detrimento de outras vozes ligadas aos movimentos sociais que participaram das passeatas. Do mesmo modo, a atuação policial apareceu, via de regra, numa perspectiva reativa, com policiais se defendendo dos ataques ou resguardando o patrimônio público e privado dos atos de vandalismo. Será mesmo? E o rigor na repressão policial ao final do grande ato público, na Avenida Presidente Vargas, o maior realizado no país, no dia 20 de junho? Manifestantes que apenas buscavam fugir dos tumultos ficaram sitiados em bares e perseguidos pela Tropa de Choque pelas ruas da Lapa e do Centro da cidade. O mesmo ocorreu no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e na Faculdade Nacional de Direito, ambos da UFRJ, onde centenas de estudantes se refugiaram para escapar do cerco policial.     
O contraponto crítico do que era veiculado na grande imprensa apareceu com vigor nas redes sociais durante os protestos. Em textos, fotos e vídeos, vários coletivos de comunicação acompanharam de perto os eventos, denunciando a presença de agentes infiltrados especializados em transformar atos pacíficos em tumultos generalizados. Ainda que a Internet, por sua natureza catalisadora e viral, seja um território livre também para disseminar boatos em momentos de tensão social, os conteúdos postados na rede contribuíram para alertar sobre os abusos policiais e violação de direitos humanos, como as prisões aleatórias de quem estava longe dos atos de vandalismo.
Nesta terça-feira, dia 2, uma nova manifestação popular está marcada, dessa vez pela desmilitarização da polícia. Uma pauta legítima, reforçada pelo emprego desproporcional da força policial na comunidade Nova Holanda. Não é uma pauta da periferia ou do centro. É uma pauta do Rio de Janeiro para a tomada de consciência sobre a importância de que os direitos que valem para uns devem valer para todos. É uma pauta do Brasil na avenida de mesmo nome.

* Marcio de Souza Castilho é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)