Por Elisa Bastos Araujo
O fetiche da exclusividade embebido por vociferações sensacionalistas. Esta é a combinação da reportagem realizada pela Rede Record de Televisão no último domingo (09/12) para o programa Domingo Espetacular, em decorrência da entrevista “exclusiva” realizada com Guilherme de Pádua, assassino confesso da atriz Daniela Peres. A vitimização, elemento tão impregnado nas narrativas da violência, é um fator bastante característico do discurso midiático em questão. Daniela, no entanto, não é mais a real vítima. Agora o seu algoz assume esta posição, diante das soluções que encontrou ao longo do seu histórico de vida.
A violência do crime, além da notoriedade da vítima, é um dos fatores que intensificaram a amplitude do caso. A narrativa apresentada pela reportagem utiliza artifícios engessados de construção da retratação da violência, por se tratar de um crime com bastante apelo popular. Além disso, a noção de realidade e ficção permaneceu confusa, por conta dos envolvidos no crime serem par romântico em De Corpo e Alma, novela de Glória Peres, mãe da vítima. A reportagem é construída quase que sob uma narrativa ficcional: o repórter literalmente narra o que aconteceu através de uma linguagem mais literária e menos jornalística.
Marcelo Rezende imposta sua voz na mais completa evidência da perniciosidade que reside nas marcas estereotipadas da construção imagética. O assassino de um dos crimes que talvez mais tenha impactado o Brasil, a ponto de ofuscar um impeachment de um presidente da república, vira vítima das suas próprias atitudes, quase um herói de si mesmo, alguém capaz de se superar e se arrepender, mesmo diante de algo tão hediondo.
Diante da estrutura jornalística podemos até afirmar que nada ali pode ser assim caracterizado. Não houve confronto de informações, todas as vozes do discurso evidenciam aquilo que Guilherme estava dizendo, quase que num esforço sobre-humano da emissora para se auto afirmar e ser credibilizada enquanto veículo jornalístico, a única, por ser exclusiva, a ser capaz de nos trazer a verdade até então desconhecida.
O aniversário da morte de Daniela, se é que assim se pode morbidamente chamar, foi lembrado da maneira mais baixa de estereótipos, máscaras e encenações (dos dois lados da entrevista). Não houve nem a tentativa de se falsear a tão prezada e impossível imparcialidade, já que o entrevistador, diante do entrevistado, concordava com o que lhe era dito, completava suas frases, quase o orientando sobre o que dizer. É como se o crime cometido por Guilherme tivesse sido algo justificável diante das suas palavras, só agora expostas. “O que os homossexuais têm a ver com isso, Marcelo?”, pergunta o entrevistado sobre um detalhe do processo criminal. “Nada.”, responde o entrevistador, numa inversão de papéis bastante conclusiva sobre todo o posicionamento da emissora diante da entrevista.
A quase justificativa para o crime apontada pelos realizadores da reportagem é cada vez mais evidenciada. Marcelo Rezende narra os acontecimentos e afirma que Paula esfaqueou Daniela para inventar um “falso álibi criado depois do ‘transe’ pós-crime”. O perito ainda diz que um homem, para matar, esfaqueia apenas com um ou dois golpes, mas uma mulher é a capaz de desferir vários golpes contra uma vítima, o que foi o caso. Esta afirmação praticamente isenta Guilherme de culpa, já que em momentos anteriores da entrevista, o especialista afirma que a morte de Daniela não foi por asfixia, quando Guilherme segurou Daniela em seus braços supostamente apartando a briga entre ela e sua ex-mulher; mas sim por golpes de tesoura.
A emissora apresenta a reportagem, em seu site, da seguinte forma: “Foram seis meses de negociação antes de revelar, pela primeira vez, detalhes que só foram mostrados no julgamento. Guilherme de Pádua conta detalhes do assassinato 20 anos depois do crime que parou o Brasil.”. Ué, não seria a “versão de Guilherme sobre o assassinato”? Desta forma é nítido que a Record põe o fato de ter a exclusividade tão acima de todo o resto que é como se tudo o que ele dissesse fosse toda a verdade.
Não é a existência, por si só, da entrevista que está sendo duramente criticada, é bom que se diga, mas sim a forma como conduziram aquelas verdades (ou inverdades). Onde estavam as perguntas confrontadoras para fazerem-no entrar em contradição, talvez? Parecem escapar os ganchos e brechas deixados por Guilherme. O entrevistador perde muitos momentos de interrompê-lo (ou de aproveitar pausas) e perguntar coisas fundamentais para o entendimento da história.
A edição também deu sua parcela de contribuição para essa construção tendenciosa. A música, os elementos gráficos, todos conduzem a narrativa de Guilherme como um filme de ação macabro ou um trash de terror. Até mesmo um levantamento de sobrenaturalidade foi feito: “imagens exclusivas das férias de Daniela, exatamente um ano antes de ter sido morta”. Quantas e quantas pessoas não fazem filmagens de suas férias todos os dias, hein?
O que não se pretende neste texto, por outro lado, é que diante de casos semelhantes o jornalista seja descortês. O que está sendo levantado aqui é a condução da verdade, de acordo com algo que lhe seja conveniente, isso sim é que nunca deve ser feito. Infelizmente foi o que vimos na reportagem da Record: tudo foi construído para que Guilherme de Pádua fosse perdoado, visto como alguém que superou as dificuldades, se entregou a Deus e enfrentou os seus erros. Pode até ser que seja verdade, mas essa não deve ser a única possibilidade de verdade exposta por um veículo de comunicação. Queremos que o jornalista apenas deixe as outras vozes do fato falarem por si só. Você, “jornalista”, é apenas um mediador, que deve prezar pela relativização das palavras na hora de recontar os fatos.
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
SOBROU PARA O SANTO...
“Tristeza, por favor, vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim (...)”. Numa das primeiras cenas de Salve Jorge, novela da TV Globo que estreou há duas semanas na faixa das 21h, a música “Tristeza”, de Niltinho e Haroldo Lobo, é interrompida por tiros, explosões e gritos. A protagonista (a atriz Nanda Costa) corre freneticamente com o filho pelas vielas do Complexo do Alemão em busca de abrigo entre ônibus e carros incendiados. Algumas cenas depois, o capitão do Exército (o ator Rodrigo Lombardi), que representa o mocinho do folhetim, prepara-se para liderar as forças de ocupação.
Não era preciso assistir ao capítulo inicial da trama para que os telespectadores conhecessem o desfecho do embate entre as forças militares e os traficantes. Com imagens dos noticiários de telejornais da TV Globo no período da ocupação do Complexo do Alemão, em novembro de 2010, a novela procurou fundir real e imaginário, apropriando-se do jornalismo para conferir uma chancela de credibilidade à ficção.
“Vencemos. Trouxemos a liberdade para o Morro do Alemão”, anuncia uma voz em off. O capitão-protagonista aparece erguendo o pavilhão nacional no ponto mais alto da favela, representando a retomada do território pelo Estado. Se a tristeza insistia em ficar na alma do poeta, o teleférico parece simbolizar a entrada da comunidade em uma “nova era”, tendo agora como fundo musical os versos de “Aquele abraço”, de Gilberto Gil: “O Rio de janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo (...)”.
Assim transcorreu o capítulo de estreia de Salve Jorge em sua abordagem ficcional sobre um episódio real de grande repercussão na história recente do Rio de Janeiro e estratégico do ponto de vista da política de segurança pública, em curso, pelo Governo do Estado. Mais do que perceber as estratégias narrativas na elaboração dos personagens ou as produções de sentido empreendidas na seleção musical de “Tristeza” e “Aquele abraço”, representando simbolicamente momentos históricos distintos na vida daqueles moradores, os primeiros capítulos de Salve Jorge formam um microcosmo sobre o modo como os meios de comunicação de massa produzem representações sociais sobre o crime, contribuindo para construção de consensos.
Múltiplas violências
Alinhados com outros discursos num processo permanente de negociação, e não de imposição, com diferentes instâncias sociais, os produtos de comunicação de massa colaboram para reproduzir o conceito de violência como unidade estática, homogênea, contrapondo-se ao discurso da ordem e da paz. Trata-se de uma violência que, na visão de Marilena Chauí (1999), é entendida pela sociedade brasileira apenas como “um acidente na superfície social”, não incluindo outras formas, tais como as desigualdades socioeconômicas, a corrupção, o racismo, a discriminação de gênero, a intolerância religiosa, dentre outras.
A estigmatização dos territórios populares é outro traço evidente tanto na teledramaturgia como no próprio discurso jornalístico. Em Salve Jorge, esses dois universos se encontram nos primeiros capítulos, conforme já mencionado. A narrativa remete a noção de simulacro, não sendo possível perceber com nitidez onde termina a ficção e onde começa o real. Assim, as favelas são caracterizadas como lugares exclusivos de violência. Representam um “território inimigo”, uma construção histórica particularmente no Rio de Janeiro desde o final do século XIX e início do XX. Esse “outro” que deve ser combatido e eliminado é o que vai legitimar soluções de força, como a ocupação do Complexo do Alemão e posteriormente a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Como afirma Muniz Sodré (2006), “quanto maior a ameaça de catástrofe, maiores as supostas exigências de uma moral restauradora”.
Na novela, uma ilustração dessa narrativa de “guerra” pode ser percebida na cena em que o capitão-protagonista está se preparando para ocupar o conjunto de favelas. A passagem faz referência a um clássico dos filmes de ação estadunidense: tal como Rambo, interpretado por Sylvester Stallone, o herói brasileiro ajusta as vestimentas e confere o armamento pesado para enfrentar os inimigos do Alemão. Enquanto o militar saca a medalha de São Jorge, o santo guerreiro, o traficante beija o fuzil no outro lado do “front”.
O roteiro folhetinesco seguiu exatamente a cobertura da imprensa sobre o caso em que se destaca o triunfalismo da operação policial-militar. Esse aspecto já foi abordado por mim no artigo “Uma sensação de déjà vu” (http://nobecoescuro.blogspot.com.br/2010/12/midia-e-violencia-no-rio-sensacao-de.html). Importa salientar aqui que, apesar de avanços no plano político-institucional em áreas ocupadas por UPPs, a participação efetiva dos moradores no debate sobre os problemas das comunidades ainda é um direito a ser conquistado. Por enquanto, as favelas “pacificadas” não deixaram de ser caso de polícia. O diálogo envolvendo a personagem que faz a mãe da protagonista (atriz Dira Paes) é emblemático nesse sentido:
- “Você acha que essa paz veio para ficar?”
- “Só acredito nessa paz mesmo quando não estiver cercada de fuzil, porque ele mudou de mão, mas fuzil continua por aí. Pelo menos, ta mudando”
- “É. Tem que começar por algum lugar”
No mundo real, os moradores permanecem numa relação paternalista e assistencialista, dessa vez com o poder institucionalizado do Estado. Este, por sua vez, tem demonstrado extrema dificuldade em perceber os territórios populares como campo de experiências plurais e complexas.
Marcio de Souza Castilho
Jornalista e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)
Não era preciso assistir ao capítulo inicial da trama para que os telespectadores conhecessem o desfecho do embate entre as forças militares e os traficantes. Com imagens dos noticiários de telejornais da TV Globo no período da ocupação do Complexo do Alemão, em novembro de 2010, a novela procurou fundir real e imaginário, apropriando-se do jornalismo para conferir uma chancela de credibilidade à ficção.
“Vencemos. Trouxemos a liberdade para o Morro do Alemão”, anuncia uma voz em off. O capitão-protagonista aparece erguendo o pavilhão nacional no ponto mais alto da favela, representando a retomada do território pelo Estado. Se a tristeza insistia em ficar na alma do poeta, o teleférico parece simbolizar a entrada da comunidade em uma “nova era”, tendo agora como fundo musical os versos de “Aquele abraço”, de Gilberto Gil: “O Rio de janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo (...)”.
Assim transcorreu o capítulo de estreia de Salve Jorge em sua abordagem ficcional sobre um episódio real de grande repercussão na história recente do Rio de Janeiro e estratégico do ponto de vista da política de segurança pública, em curso, pelo Governo do Estado. Mais do que perceber as estratégias narrativas na elaboração dos personagens ou as produções de sentido empreendidas na seleção musical de “Tristeza” e “Aquele abraço”, representando simbolicamente momentos históricos distintos na vida daqueles moradores, os primeiros capítulos de Salve Jorge formam um microcosmo sobre o modo como os meios de comunicação de massa produzem representações sociais sobre o crime, contribuindo para construção de consensos.
Múltiplas violências
Alinhados com outros discursos num processo permanente de negociação, e não de imposição, com diferentes instâncias sociais, os produtos de comunicação de massa colaboram para reproduzir o conceito de violência como unidade estática, homogênea, contrapondo-se ao discurso da ordem e da paz. Trata-se de uma violência que, na visão de Marilena Chauí (1999), é entendida pela sociedade brasileira apenas como “um acidente na superfície social”, não incluindo outras formas, tais como as desigualdades socioeconômicas, a corrupção, o racismo, a discriminação de gênero, a intolerância religiosa, dentre outras.
A estigmatização dos territórios populares é outro traço evidente tanto na teledramaturgia como no próprio discurso jornalístico. Em Salve Jorge, esses dois universos se encontram nos primeiros capítulos, conforme já mencionado. A narrativa remete a noção de simulacro, não sendo possível perceber com nitidez onde termina a ficção e onde começa o real. Assim, as favelas são caracterizadas como lugares exclusivos de violência. Representam um “território inimigo”, uma construção histórica particularmente no Rio de Janeiro desde o final do século XIX e início do XX. Esse “outro” que deve ser combatido e eliminado é o que vai legitimar soluções de força, como a ocupação do Complexo do Alemão e posteriormente a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Como afirma Muniz Sodré (2006), “quanto maior a ameaça de catástrofe, maiores as supostas exigências de uma moral restauradora”.
Na novela, uma ilustração dessa narrativa de “guerra” pode ser percebida na cena em que o capitão-protagonista está se preparando para ocupar o conjunto de favelas. A passagem faz referência a um clássico dos filmes de ação estadunidense: tal como Rambo, interpretado por Sylvester Stallone, o herói brasileiro ajusta as vestimentas e confere o armamento pesado para enfrentar os inimigos do Alemão. Enquanto o militar saca a medalha de São Jorge, o santo guerreiro, o traficante beija o fuzil no outro lado do “front”.
O roteiro folhetinesco seguiu exatamente a cobertura da imprensa sobre o caso em que se destaca o triunfalismo da operação policial-militar. Esse aspecto já foi abordado por mim no artigo “Uma sensação de déjà vu” (http://nobecoescuro.blogspot.com.br/2010/12/midia-e-violencia-no-rio-sensacao-de.html). Importa salientar aqui que, apesar de avanços no plano político-institucional em áreas ocupadas por UPPs, a participação efetiva dos moradores no debate sobre os problemas das comunidades ainda é um direito a ser conquistado. Por enquanto, as favelas “pacificadas” não deixaram de ser caso de polícia. O diálogo envolvendo a personagem que faz a mãe da protagonista (atriz Dira Paes) é emblemático nesse sentido:
- “Você acha que essa paz veio para ficar?”
- “Só acredito nessa paz mesmo quando não estiver cercada de fuzil, porque ele mudou de mão, mas fuzil continua por aí. Pelo menos, ta mudando”
- “É. Tem que começar por algum lugar”
No mundo real, os moradores permanecem numa relação paternalista e assistencialista, dessa vez com o poder institucionalizado do Estado. Este, por sua vez, tem demonstrado extrema dificuldade em perceber os territórios populares como campo de experiências plurais e complexas.
Marcio de Souza Castilho
Jornalista e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)
sexta-feira, 1 de junho de 2012
RIO+20: VALE À PENA VER DE NOVO?!
Normalmente, a partir dos comentários que faço, é comum receber algum tipo de advertência dos meus amigos sobre o cuidado que devo ter com “teorias conspiratórias”. No mais das vezes, produzo análises que parecem indicar que “procuro pelo em ovo”, lembrando de outra pessoa querida. Em conversas recentes com aqueles a quem estimo, tenho ouvido coisas do tipo: “Depois das UPP’s, São Gonçalo está muito mais perigoso”, “A violência em Niterói já superou (e muito) a do Rio”, “Até em Maricá, antes tranqüila e pacata, a coisa está feia”. Ao dizer que se trata, antes, de uma sensação, ganho olhares que poderiam indicar coisas do tipo: onde este cara está vivendo? Então, me apresso em responde: vivo no Rio.
Ao longo desses últimos anos de investigação social, tenho revelado uma predileção pela forma arguta com a qual Carlo Ginzburg se debruça sobre processos que são, especialmente, históricos. Na verdade, a História parece-me particularmente importante para entender o que acontece, seja com 20 ou 120 anos, nessa República onde os direitos continua a ser para alguns. Evidentemente, quando me refiro a espaços temporais relativamente longos, não estou pasteurizando todas as idas e vindas como se o Brasil tivesse se constituído de forma linear e sem contradições. É óbvio que há uma infinidade de rupturas dentro das continuidades que observo. Mas, o que parece ser difícil de negar é que a Rio+20 representa mais um capítulo dessa luta travada em solo tupiniquim.
Como anunciado no site oficial da Conferência, “a Rio+20 será realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, e marcará os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92)” (www.rio20.gov.br). Talvez seja desnecessário mencionar que todo um aparato militar, mas igualmente político, começou a ser montado para que o evento ocorra com toda segurança, afinal, mais uma vez, os olhos de mundo estarão voltados para cá. Picardias à parte, quando no mesmo endereço é possível encontrar que o “objetivo da Conferência é a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável”, aí, longe de tranquilizar, o que cresce é a preocupação.
Em 1992, já que a alusão à Rio-92 é explicita, tive a oportunidade de pesquisar, publicando posteriormente em Criminalidade no Rio de Janeiro (Revan, 2006), a relação entre o evento, a ação das Forças Armadas e o comprometimento dos meios de comunicação naquele processo “exitoso”. Na verdade, se tivesse uma breve amnésia e esquecesse o ano em que estou vivendo, seria possível acreditar que leio neste momento histórico o mesmo conjunto de informações produzidas nos primeiros anos da década de 1990. Com uma mudança significativa: lá se criticava abertamente o governador Leonel Brizola; aqui se elogia veladamente o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes. Ah, é claro, e o tipo de conversa que tenho com os meus amigos. Então, voltemos no tempo. Nesse primeiro momento, na curta duração.
Inicialmente, voltemos a 1992. É absolutamente curioso – até hoje, ninguém conseguiu me mostrar como é possível uma mágica dessas – que os índices de criminalidade estivessem numa elevação vertiginosa até o dia 02 de junho e recuperasse a curva ascendente a partir do dia 15 junho daquele ano, com breve intervalo (com quedas igualmente vertiginosas e às vezes total ausência de crime) entre os dias 03 e 14, coincidentemente durante a Rio-92, que contou com a efetiva presença das Forças Armadas no espaço urbano carioca. Mais curioso ainda: como a ausência de crimes na Cidade Maravilhosa, que regiões figuravam nos jornais como as que “recebiam os bandidos que fugiam de um enfrentamento com o Exército? Niterói, São Gonçalo, Maricá, Itaboraí, Baixada Fluminense. Coincidência?
O que a Rio+20 parece trazer de singular é o amálgama de duas atualizações históricas: uma do início, outra do fim do século XX. Em 2012, o que nos parece particularmente relevante é a “ótima relação” (são os chefes do Executivo municipal e estadual que assim a define) entre o governador Sérgio Peçanha e o prefeito Eduardo Passos. A primeira atualização diz respeito... Ops! Erramos os nomes ou se trata de um ato-falho? A sintomatologia dos atos-falhos pode não ajudar a entender melhor essa irrupção. A primeira atualização, então, diz respeito às já tão faladas reformas urbanas (modernização do Porto e integração de diversas regiões da cidade) de gestão do prefeito Pereira Passos – você teve a oportunidade de passear pelo centro do Rio nos últimos tempos? – com o objetivo da difusão da civilização. Paralelamente, não podemos nos esquecer do governador (presidente àquela época) do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha, que, três anos após o fim do seu mandando, tornar-se-ia presidente da República. O desejo que parece mover o atual governador do estado parece fazer com que qualquer semelhança talvez não mereça ser tratada como mera coincidência.
A palavra civilização pode ser apresentada como uma daquelas expressões de ouro do léxico de nossas elites. Mas, de que civilização se trata? No início do século XX, com Pereira Passos, Nilo Peçanha, Rodrigues Alves, colocar o Brasil nos trilhos da modernidade era criar estratégias para impedir “aquela gente feia, mal vestida, que a mão da providência não deu um fim, que representava o atraso...” (vide Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko). Em sua versão contemporânea, é expulsar os indesejados para fora da cena urbana, da cena política, da cena midiática. Assim, o que assistimos hoje é mais uma atualização histórica de um processo que tem início com o fim da escravidão e a instauração da República e tem se espraiado ao longo desses últimos 123 anos.
Lendo a notícia no G1 de que “uma reunião realizada na quinta-feira (31/05) no Comando Militar do Leste (CML) colocou fim à crise que havia sido iniciada entre os militares e a Cúpula dos Povos depois que os organizadores do evento foram informados que parte do território no Aterro do Flamengo lhes seria retirada para possibilitar o aquartelamento de tropas e veículos do Exército e da Polícia Militar do Rio de Janeiro durante a Rio+20” (desculpe-me leitor pela reprodução um tanto extensa), tornou-se impossível não conectar 1992 e 2012 – menos pelo aniversário dos 20 anos daquela Conferência e mais pela permanência da repressão e do autoritarismo que tem orientado às ações do poder contra os comportamentos classificados como desviantes ou contra aqueles que anda não se consegue classificar.
Se o objetivo da Conferência é de renovar o compromisso com o desenvolvimento sustentável, com respeito à natureza, à biodiversidade, ao planeta, ela é muito bem vinda. Mas, o que me deixa realmente atento é que, no Brasil, desenvolvimento sustentável pode ser ressignificado e acobertar vários eufemismos, especialmente porque nesta edição também serão contempladas “a avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes” (www.rio20.gov.br). Ao longo dos anos, tenho aprendido com Jacques Lacan e Slavoj Zizek que, se há um esforço estupendo para nos convencer de que um determinado processo não é atravessado por ideologia isso é um claro sintoma de que ela está ali manifesta. Assim, me parece significativo que a Rio+20 atraia os olhos no mundo, mas não devemos fechar os nossos para ela e para o que representa.
por Wilson Borges
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