sexta-feira, 19 de julho de 2013

NA CULTURA DO ESFREGÃO PRECISAMOS DE MAIS SOFRIMENTO E MENOS ESTADO DE FELICIDADE


Por Danielle Brasiliense

Fui abordada por um repórter no centro do Rio em um dos dias de manifestações pela redução do preço da passagem dos ônibus. Com microfone sem bandeira e muito simpático, o jornalista me perguntou o que eu estava fazendo ali na Av. Rio Branco e o que estava achando da passeata sem violência. Eu respondi rápido gaguejando um pouco, tímida por estar dando aquela entrevista repentina, disse que com paz tudo ficava mais tranqüilo. Essa redundância que me ocorreu naquele momento se transformou em uma vinheta da Globo News sobre a cobertura das manifestações. Sem querer virei frase feita que reproduz uma ideia de que as coisas devem ser sempre ordenadas, limpas, higiênicas como pretendiam os iluministas do século XVIII,  os moradores do Leblon e todos que vivem por esta ordem social pré-escrita pelos ideais de civilização.
Interessante que nas primeiras edições desse vídeo exibido em diversos programas da Rede Globo, antes da minha fala tinha uma narrativa sobre a linda passeata, onde todos usavam branco. Só que no decorrer deste vídeo com outros depoimentos sobre a tal paz vem a parte da violência dos denominados vândalos que invadiram a Assembléia Legislativa naquela noite. Toda a passagem clean do vídeo termina no horror, na desordem. É como se tudo estivesse indo muito bem até que vândalos, sujos e asquerosos surgissem para atrapalhar aquela branquitude juvenil com rosas na mão, educada e comportada que queria apenas reclamar na rua os seus direitos. E tem sido assim: “um grupo pequeno, uma minoria de vândalos”. Desde que as manifestações começaram no mês de junho ouvimos esse tipo de frase nas diversas mídias e repetidas vezes também em declarações dos governantes. “Vândalos atrapalham o lindo movimento dos jovens”, dizem ainda eles repetidas vezes. O discurso do vandalismo em um primeiro momento se fez pronto para abafar os protestos da sociedade que foi à rua reivindicar seus direitos. Nenhuma novidade de enquadramento narrativo midiático, pois me parece que quando se trata a temática da violência, a mídia procura primordialmente demarcar territórios de higiene social dividindo assim, o mundo da ordem e da desordem. O limpo de um lado e o sujo do outro. Assim é muito fácil, não é verdade? Aqui estão os baderneiros e ali os de paz. Que construção textual fácil e ingênua sobre o mundo complexo em que vivemos!
Mas esse é o discurso elitista que conhecemos e ultrapassa séculos em nossa memória. Quando as operações de ordem são feitas nas favelas, fala-se em caça aos bandidos e como sabemos, sobra também para os outros moradores vistos como parte desta sujeira que no imaginário da “cultura do esfregão” precisa ser higienizada, anulada. Quando se trata de colocar ordem no asfalto, os impuros são os vândalos, baderneiros. Deste modo, a pergunta que não quer calar é: quando vamos entender que esse projeto civilizador de limpeza não nos cabe mais? Por favor, chega deste discurso que incentiva o pensamento da impureza e consequentemente da exclusão. Basta! Basta de achar que o mundo e a sociedade são apenas divididos em dois aspectos, o sujo e o limpo. Até quando vamos viver dos projetos executados pela psiquiatria do século XIX do excesso de ordem, quando se dizia que a loucura deveria ser exportada para longe da terra fértil, isolada em um barco, no qual a água límpida protegia a terra distante da impureza.
 Não adianta mais viver apenas pela defesa do sofrimento, às vezes, sofrer, inclusive, com pimenta nos olhos, gás lacrimogênio e porretes na cabeça é a solução. Defender-se do sofrimento significa gerar mais sofrimento e contribuir com discursos de ordem que enfatizam mais ainda o lugar da desordem. O que é desordem? Viver na favela, vaiar a polícia covarde, quebrar com revolta as vidraças dos prédios públicos, queimar pneus, fazer revolução contra uma maldita e arbitrária ordem? Parem de não querer sofrer, porque sofrimento é a alma do caos e sem o caos não há revolução, transformação e vida. Não se defendam do sofrimento e ensinem aos seus filhos que sofrer também é parte da vida. Chega dessa maluquice de felicidade a qualquer preço. Não ajuda e isso não é viver.
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terça-feira, 9 de julho de 2013

TEMPOS SEM MEDO

Por Pedro Barreto *

“O patrimônio da família – o medo – estava provisoriamente a salvo; medo dos ladrões, dos seqüestradores, dos estupradores, medo dos ventos, das enchentes, dos miseráveis, dos poderosos, dos fiscais, medo do terror, dos traficantes, dos negros, dos nordestinos, medo dos maloqueiros da favela, dos vendedores, dos cobradores, dos pregadores fanáticos, dos moto-boys que fumam maconha, dos ônibus lotados que despencam pela rua, medo da liberdade, medo da morte, medo da vida, medo do outro.”* *

Medo. Este é o sentimento “classemediano” dominante no mundo neoliberal capitalista, desde que os governos Reagan e Tachter impuseram ao mundo a cultura do “individualismo egoísta” (Reiner, 2007), no qual, “é preciso cuidar primeiro de si e depois de seu vizinho”, segundo afirmou a dama de ferro. No entanto, a frase que determinou as políticas penais neoliberais foi a do também ex-primeiro ministro britânico John Major, que sentenciava: “é preciso punir mais e compreender menos”. Estava batido o martelo.

O Brasil, este país abençoado pela natureza, mas historicamente abraçado à ideologia burguesa, incorporou os ideais neoliberais. E a sua grande mídia, por sua vez, prestou-se à tarefa de difundi-los do Oiapoque ao Chuí, plim-plim, sem cerimônias. Desta forma, nosso secular déficit sócio-econômico acentuou-se ainda mais com uma política penal retributiva (Garland, 2008), que pregava a retribuição do dano causado à vítima, em detrimento do infrator.

O clamor por mais lei e ordem tornou-se um mantra na grande mídia e na pauta das campanhas eleitorais. No Rio, a campanha à Prefeitura Municipal de 2008 foi antecedida pela série de reportagens “ilegal e daí?”, do jornal O Globo, que publicava cartas de leitores indignados com a população de rua, sujeira nas calçadas, vendedores ambulantes e outros. Assim que assumiu o posto, Eduardo Paes não titubeou e lançou a política do “Choque de Ordem”, prendendo usuários de crack compulsoriamente, apreendendo mercadorias de vendedores ambulantes, multando quem sujasse as ruas, e mesmo, pasmem, encaminhando para averiguação foliões que fossem flagrados urinando nas ruas durante os festejos momescos.

Megaeventos

Pronto, a cidade parecia regulada, monitorada, controlada por um poder público que não aceitaria mais “desordem”, “baderna”, “ilegalidades”. Atendendo a uma mesma lógica de gentrificação da cidade, o governador Sérgio Cabral Filho implantou, em novembro de 2008, a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), no Morro Santa Marta. Tudo muito bonito e arrumadinho, como os moradores de Botafogo e os turistas descolados gostam. Tanto que passaram a usufruir as maravilhas gastronômicas vendidas pelas moradoras da favela, a dançar até de manhã nos sambinhas moderninhos da “Laje Michael Jackson”, tudo por um precinho pra lá de salgado que os próprios moradores da comunidade não poderiam dispor. Enquanto isso, a polícia continuava a entrar nas casas a pontapés sem pedir licença, o tradicional baile funk havia sido proibido e muitos antigos residentes do morro tiveram que deixá-lo, devido aos altos custos cobrados pelas empresas legalizadas, que passaram a explorar serviços como tv a cabo, entrega de gás de cozinha, fornecimento de energia elétrica, entre outros. Mas nada disso tirou o ânimo da imprensa que não cessou de enaltecer os “benefícios trazidos pela UPP”. Só esqueceu-se de dizer a quem eles haviam sido concedidos.

Portanto, os governos municipal, estadual e federal uniram-se e lograram êxito em algo que há décadas não era visto: a unidade em torno de iniciativas comuns nas três esferas governamentais. Seria estranho, não estivéssemos vivendo uma fase singular em nossa história, quando receberemos, nos próximos anos, dois dos maiores megaeventos esportivos internacionais: a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, organizados por empresas multinacionais e patrocinados por grandes oligopólios privados que são, efetivamente, aqueles que lucrarão com tudo isso. Eventos esses que utilizarão bilhões de reais em recursos públicos na construção de estádios e demais obras de infraestrutura que deveriam servir como legado para a população. No entanto, o que se tem visto é um ataque às leis constitucionais brasileiras, à soberania nacional, imposição de um estado de sítio, comparável mesmo aos tempos do regime militar, higienização do espaço urbano - com remoções das populações mais pobres ao bel prazer de empreiteiras e dos organismos internacionais - superfaturamento de obras, e toda sorte de desvios de recursos públicos possível.

Manifestações populares

E aí, o que fez o brasileiro? Até hoje é difícil compreender o que está acontecendo nas ruas das cidades brasileiras nas recentes manifestações populares, que reivindicam uma miríade de coisas que reúne desde a “tarifa zero” até o “casamento gay”, passando pela paralisação da usina de Belo Monte, o “Fifa, go home” e a prisão dos mensaleiros. São os pobres? É a classe média? É a esquerda? É a direita? São os neonazistas? Impossível saber e, ao mesmo tempo, muito fácil supor que são todos esses juntos e misturados. O fato é que todos nos unimos devido ao nosso incurável sentimento de “ninguém aqui me faz de otário”, presente de maneira indelével no DNA tupiniquim, mas que aflorou desta vez, graças, em boa parte, às articulações via redes sociais, e à exacerbação da cara-de-pau da classe política que, descaradamente, resolveu admitir que não atende aos anseios de quem a elege, mas sim, aos caprichos de quem lhes financia as campanhas. De acordo com uma pesquisa do Departamento de Ciência Política do IFCS/UFRJ, 75% das campanhas políticas mais caras saem vitoriosas das urnas. É o lema “pagou passou” elevado à instância política.

Então, como diria Gramsci, quando o aparelho coercitivo falha, o aparelho repressor atua. Trocando em miúdos, quando o “bla-bla-bla”, o “lero-lero”, o “vem cá meu nego” do Estado não cola mais, aí vêm a polícia e as forças militares e baixam o sarrafo. Foi o que aconteceu, só que desta vez, indiscriminadamente. Acostumada há mais de 200 anos a perseguir, bater, prender e matar negros e pobres nas favelas e periferias, a Polícia Militar estendeu seus “serviços” às classes média e alta, como já fizera durante os governos militares.

Violência que une

E então, fez-se a mágica: a força bruta do Estado, por meio de seu braço armado, ao invés de arrefecer os ânimos dos manifestantes, fez pulular e multiplicar nas ruas o número de indignados. Ainda que o tratamento dado pela polícia tenha sido bastante distinto, haja vista os dez mortos no Complexo da Maré e as inocentes balas de borracha e gases lançados contra os burgo-manifestantes, ou coxinhas, da Delfim Moreira, pobres e ricos passaram a dividir espaço nas passeatas. Ironicamente, a truculência estatal, que os diferenciava e que, de certa forma, historicamente, sempre foi reivindicada e utilizada pelas elites para a manutenção da segregação social no Brasil, ajudou a reduzir a distância entre Leblon e Maré e a formar uma grande massa, ou mesmo, a dar vida a um gigante (palavra batida, mas ainda pertinente) outrora adormecido, recém desperto e ainda abobalhado, mas já furioso. Mesmo que os rostos corados, bem-nutridos e cabelos escovados sejam maioria, o abismo entre as reivindicações das distintas classes sociais encurtou. Moradores da Rocinha e do Vidigal ocuparam o calçadão do nababesco Leblon para exigir a renúncia do governador, enquanto que estudantes e trabalhadores da zona sul deixaram em casa seus medos e preconceitos para tomar de assalto a Linha Vermelha e reivindicar punição aos meganhas criminosos da Maré.

Ao notar a inviabilidade de manutenção do discurso contrário ao uníssono popular, oriundo da viral articulação das redes sociais, que se expressou na massiva mobilização nas ruas de todo o país, o que fez a grande imprensa? O oráculo do pensamento “classemediano” brasileiro, então orientou seus adeptos: “meninos, manifestem-se pacificamente, mas sem vandalismo, sem bandeiras de partidos; cartazes, estes sim, contra o governo petista, os mensaleiros e contra a corrupção, combinado?”. E tome de vídeos, fotografias, editoriais, nos telejornais, diários e revistas semanais relatando a ação de “vândalos” contra as acuadas tropas policiais, coitadas, exibindo a atuação de “marginais” contra os nossos prédios públicos, tão bem cuidados e preservados, né não?

Questionamento das instituições

Será que está difícil perceber que trata-se de um questionamento – ainda que tardio - a instituições que há anos atuaram sem contestações no Brasil, como as violentas e brutais forças policiais, às mentirosas e manipuladoras empresas de comunicação, ao inescrupuloso Congresso Nacional, ao elitista e racista Poder Judiciário, ao sistema político que elege e mantém os representantes de nossa falaciosa democracia em seus cargos, exaurindo os recursos de nosso erário, legislando, julgando e executando em favor de interesses privados?

Algumas dúvidas ainda pairam no ar sobre os desdobramentos das manifestações. Terá êxito a campanha da grande imprensa para desqualificar os manifestantes e transformar toda a mobilização em uma mera marcha “anticorrupção” contra setores específicos do partido do governo, antecipando, oportunistamente, a campanha eleitoral midiática de 2014? Conseguirão os setores conservadores impor suas bandeiras aos movimentos e deixar tudo como era antes, no melhor modelo “façamos a revolução antes que o povo a faça”? Ou estaremos participando e assistindo a um momento de profunda transformação social, cultural e política em nosso país, em que as instituições e a própria democracia deverão se readequar a uma nova ordem que é - ao contrário daquela velha, viciosa e verticalizada - dinâmica, entremeada, participativa, múltipla e horizontalizada?

De todo modo, talvez o mais importante disso tudo sejam exatamente a mobilização da classe média, tradicionalmente acomodada e atemorizada; o debate no seio da sociedade, entre aqueles que se vangloriavam de não gostar de política; o amadurecimento político da população, há tempos distraída com “a melhor telenovela do mundo”, “o melhor futebol do mundo”, “o melhor samba”, “a melhor cerveja” e desacostumada a reflexões acerca dos rumos políticos de seu país; os questionamentos, as dúvidas e o consequente abalo de algumas estruturas já há muito tempo corroídas. Só faltava a vibração das ruas para estremecê-las.




* jornalista e doutorando em Comunicação pela ECO-UFRJ

**trecho do conto Pequenas distrações, de Gregório Bacic, disponível em http://manifestoplural.blogspot.com.br/2013/07/pequenas-distracoes.html




Referências:


GARLAND, David. A Cultura do Controle. Crime e ordem na sociedade contemporênea. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2008.

REINER, R. Law and Order: An honest citizen´s guide to crime and control. Cambridge, 2007.

domingo, 7 de julho de 2013

VIOLÊNCIA NA MARÉ: UMA PAUTA PARA O BRASIL

Por Marcio de Souza Castilho*

A operação policial ocorrida nos dias 24 e 25 de junho na comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro, que resultou na morte de dez pessoas, demonstra a necessidade inadiável de repensar o papel das forças de segurança em favelas e periferias nas grandes cidades. A violência real e simbólica que se impõe nos territórios populares revela a forma desigual como o Estado percebe os cidadãos que compartilham o espaço urbano ao demarcar a fronteira entre “nós”, os que têm acesso às políticas e serviços que promovem o bem-estar social, e “os outros”, desprovidos de direitos. O ato ecumênico marcado para esta terça-feira, dia 2 de julho, na Avenida Brasil, em memória às vítimas da Nova Holanda, pode ser um passo importante para religar as duas pontas desse tecido social fragmentado no Rio de Janeiro.
A tarefa não é simples diante das representações sobre os espaços populares e uma construção histórica estigmatizada de seus moradores como “cidadãos de segunda classe”. Em um texto que discute a memória da violência estatal no Morro do Borel, antes das políticas de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), Mariana Cavalcanti observa que “a história da repressão nas favelas cariocas também é a história das representações do poder público sobre a favela”. No início do século XX, no período de urbanização do Rio de Janeiro no governo Pereira Passos (1902-1906), esses territórios eram identificados como lugares de disseminação de doenças. Depois, no fim dos anos 40,  vistos como locais de infiltração comunista. Desde o fim dos anos 70, temos a consolidação de uma dada visão do morro principalmente como espaço privilegiado da violência e da criminalidade. Em todos os períodos históricos, diferentes ações do poder público foram adotadas não propriamente no sentido de integração dos moradores no conjunto da organização social, mas sob o imperativo da ordem e da “civilidade” – ações higienistas, políticas de remoção e ocupações de forças militares.
Tais representações trazem como consequência medidas de contenção social e ajudam a explicar episódios de brutalidade policial e violação de direitos humanos, como a operação desencadeada na comunidade Nova Holanda, causando a morte de traficantes, moradores e um policial do Bope. Em muitos casos, os homicídios estão associados a autos de resistência, mas quem vive em favelas e periferias no país carrega na memória cenas de execução sumária, atingindo, sobretudo, jovens, negros, pobres e sem acesso ao sistema educacional. Estes representam esse “outro indesejado” que atravessa a história da formação urbana nas grandes cidades. São comunidades que vivem um estado de excepcionalidade cotidiana, permanente, próprio de regimes ditatoriais. É por esse motivo, como conclui Mariana em sua pesquisa sobre o Borel, cujas interpretações podem ser aplicadas no contexto de outros territórios populares, que não há um sentido de repressão na favela associada exclusivamente ao regime militar, mas uma “opressão contínua”.

Nas manifestações, o centro virou periferia

A mesma ideologia militarizada esteve presente na repressão aos protestos populares que eclodiram em junho, durante a Copa das Confederações: emprego indiscriminado da força estatal, revistas policiais longe de testemunhas para “plantar” provas contra estudantes, prisões arbitrárias e aleatórias. Nas últimas semanas, o centro virou periferia e, dentro dessa lógica, todos somos como as “classes perigosas” nas favelas, inimigos a serem combatidos. Após os fatos ocorridos na comunidade Nova Holanda, essa percepção ficou clara com os cartazes lembrando que a polícia que reprime a manifestação é a mesma que executa pessoas nos morros. A diferença está no potencial letal das armas utilizadas pela polícia no asfalto e na favela. Permanece, no entanto, a cultura autoritária e, muitas vezes, ilegítima dos aparelhos policiais. Por esse motivo, os manifestantes incorporaram também como bandeira a desmilitarização da polícia como projeto para uma só cidade, integrada e sem divisões de classe ou cor.
Mesmo em comunidades que receberam as Unidades de Polícia Pacificadora em áreas estratégicas para a realização de megaeventos esportivos no Rio de Janeiro, a favela continua sendo vista como espaço a ser tratado pela polícia. Apesar de alguns avanços quanto à prestação de serviços públicos nesses locais, o projeto ainda reproduz uma lógica de controle das forças de segurança. Se as razões estão relacionadas às deficiências na formação policial que tende a associar criminalidade e pobreza, talvez seja uma questão para análise dos sociólogos. O que se percebe, contudo, é a ausência de um projeto que permita a participação coletiva, democrática e autônoma dos moradores no debate sobre os destinos dessas comunidades “pacificadas”. O poder público, que deve estar presente na favela não apenas com os seus “caveirões” (blindados), tem a tarefa de incentivar um processo para que eles possam se auto-organizar sem estar sob o jugo do poder do tráfico de drogas, mas também sem o controle exercido pelo poder das armas da polícia. Uma das principais plataformas políticas do atual governo do Estado, as UPPs vêm atendendo bem aos interesses de quem não mora exatamente nesses espaços populares.

O papel da mídia

Os meios de comunicação têm papel central nas representações sobre as regiões da cidade historicamente marginalizadas. Nota-se uma certa conivência de uma parte dos órgãos de imprensa tradicionais ou hegemônicos com a brutalidade policial nessas comunidades. O caso mais recente, porém longe de ser um caso isolado, teve repercussão a partir de uma declaração do “comentarista de segurança” das Organizações Globo, Rodrigo Pimentel, ex-policial do Bope, durante o protesto em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), no último dia 17 de junho. Ao criticar o uso de fuzis por parte de policiais para dispersar os manifestantes, Pimentel destacou que “é uma arma de guerra, uma arma de operação policial em comunidades e favelas; não é uma arma para ser usada em ambiente urbano”. Nesse raciocínio, favela não faz parte da área urbana, portanto, abusos, truculência e arbitrariedades são toleráveis.
Como não associar esse pensamento belicista ao recente episódio na favela da Coreia, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, alvo de uma operação com tiros disparados por policiais a bordo de um helicóptero? A ação para prender o traficante Matemático remete ao roteiro de filmes hollywoodianos de guerra, mas com a população civil real a mercê das rajadas de metralhadora.
Na cobertura das manifestações populares de junho, prevaleceram as cenas contundentes de depredação nas páginas de jornais e nas imagens “ao vivo” ou editadas dos telejornais. O noticiário também valorizou a versão das fontes oficiais e especialistas em detrimento de outras vozes ligadas aos movimentos sociais que participaram das passeatas. Do mesmo modo, a atuação policial apareceu, via de regra, numa perspectiva reativa, com policiais se defendendo dos ataques ou resguardando o patrimônio público e privado dos atos de vandalismo. Será mesmo? E o rigor na repressão policial ao final do grande ato público, na Avenida Presidente Vargas, o maior realizado no país, no dia 20 de junho? Manifestantes que apenas buscavam fugir dos tumultos ficaram sitiados em bares e perseguidos pela Tropa de Choque pelas ruas da Lapa e do Centro da cidade. O mesmo ocorreu no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e na Faculdade Nacional de Direito, ambos da UFRJ, onde centenas de estudantes se refugiaram para escapar do cerco policial.     
O contraponto crítico do que era veiculado na grande imprensa apareceu com vigor nas redes sociais durante os protestos. Em textos, fotos e vídeos, vários coletivos de comunicação acompanharam de perto os eventos, denunciando a presença de agentes infiltrados especializados em transformar atos pacíficos em tumultos generalizados. Ainda que a Internet, por sua natureza catalisadora e viral, seja um território livre também para disseminar boatos em momentos de tensão social, os conteúdos postados na rede contribuíram para alertar sobre os abusos policiais e violação de direitos humanos, como as prisões aleatórias de quem estava longe dos atos de vandalismo.
Nesta terça-feira, dia 2, uma nova manifestação popular está marcada, dessa vez pela desmilitarização da polícia. Uma pauta legítima, reforçada pelo emprego desproporcional da força policial na comunidade Nova Holanda. Não é uma pauta da periferia ou do centro. É uma pauta do Rio de Janeiro para a tomada de consciência sobre a importância de que os direitos que valem para uns devem valer para todos. É uma pauta do Brasil na avenida de mesmo nome.

* Marcio de Souza Castilho é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

DANIELA PERES: A NARRATIVA DA VIOLÊNCIA 20 ANOS DEPOIS

Por Elisa Bastos Araujo

O fetiche da exclusividade embebido por vociferações sensacionalistas. Esta é a combinação da reportagem realizada pela Rede Record de Televisão no último domingo (09/12) para o programa Domingo Espetacular, em decorrência da entrevista “exclusiva” realizada com Guilherme de Pádua, assassino confesso da atriz Daniela Peres. A vitimização, elemento tão impregnado nas narrativas da violência, é um fator bastante característico do discurso midiático em questão. Daniela, no entanto, não é mais a real vítima. Agora o seu algoz assume esta posição, diante das soluções que encontrou ao longo do seu histórico de vida.

A violência do crime, além da notoriedade da vítima, é um dos fatores que intensificaram a amplitude do caso. A narrativa apresentada pela reportagem utiliza artifícios engessados de construção da retratação da violência, por se tratar de um crime com bastante apelo popular. Além disso, a noção de realidade e ficção permaneceu confusa, por conta dos envolvidos no crime serem par romântico em De Corpo e Alma, novela de Glória Peres, mãe da vítima. A reportagem é construída quase que sob uma narrativa ficcional: o repórter literalmente narra o que aconteceu através de uma linguagem mais literária e menos jornalística.

Marcelo Rezende imposta sua voz na mais completa evidência da perniciosidade que reside nas marcas estereotipadas da construção imagética. O assassino de um dos crimes que talvez mais tenha impactado o Brasil, a ponto de ofuscar um impeachment de um presidente da república, vira vítima das suas próprias atitudes, quase um herói de si mesmo, alguém capaz de se superar e se arrepender, mesmo diante de algo tão hediondo.

Diante da estrutura jornalística podemos até afirmar que nada ali pode ser assim caracterizado. Não houve confronto de informações, todas as vozes do discurso evidenciam aquilo que Guilherme estava dizendo, quase que num esforço sobre-humano da emissora para se auto afirmar e ser credibilizada enquanto veículo jornalístico, a única, por ser exclusiva, a ser capaz de nos trazer a verdade até então desconhecida.

O aniversário da morte de Daniela, se é que assim se pode morbidamente chamar, foi lembrado da maneira mais baixa de estereótipos, máscaras e encenações (dos dois lados da entrevista). Não houve nem a tentativa de se falsear a tão prezada e impossível imparcialidade, já que o entrevistador, diante do entrevistado, concordava com o que lhe era dito, completava suas frases, quase o orientando sobre o que dizer. É como se o crime cometido por Guilherme tivesse sido algo justificável diante das suas palavras, só agora expostas. “O que os homossexuais têm a ver com isso, Marcelo?”, pergunta o entrevistado sobre um detalhe do processo criminal. “Nada.”, responde o entrevistador, numa inversão de papéis bastante conclusiva sobre todo o posicionamento da emissora diante da entrevista.

A quase justificativa para o crime apontada pelos realizadores da reportagem é cada vez mais evidenciada. Marcelo Rezende narra os acontecimentos e afirma que Paula esfaqueou Daniela para inventar um “falso álibi criado depois do ‘transe’ pós-crime”. O perito ainda diz que um homem, para matar, esfaqueia apenas com um ou dois golpes, mas uma mulher é a capaz de desferir vários golpes contra uma vítima, o que foi o caso. Esta afirmação praticamente isenta Guilherme de culpa, já que em momentos anteriores da entrevista, o especialista afirma que a morte de Daniela não foi por asfixia, quando Guilherme segurou Daniela em seus braços supostamente apartando a briga entre ela e sua ex-mulher; mas sim por golpes de tesoura.

A emissora apresenta a reportagem, em seu site, da seguinte forma: “Foram seis meses de negociação antes de revelar, pela primeira vez, detalhes que só foram mostrados no julgamento. Guilherme de Pádua conta detalhes do assassinato 20 anos depois do crime que parou o Brasil.”. Ué, não seria a “versão de Guilherme sobre o assassinato”? Desta forma é nítido que a Record põe o fato de ter a exclusividade tão acima de todo o resto que é como se tudo o que ele dissesse fosse toda a verdade.

Não é a existência, por si só, da entrevista que está sendo duramente criticada, é bom que se diga, mas sim a forma como conduziram aquelas verdades (ou inverdades). Onde estavam as perguntas confrontadoras para fazerem-no entrar em contradição, talvez? Parecem escapar os ganchos e brechas deixados por Guilherme. O entrevistador perde muitos momentos de interrompê-lo (ou de aproveitar pausas) e perguntar coisas fundamentais para o entendimento da história.

A edição também deu sua parcela de contribuição para essa construção tendenciosa. A música, os elementos gráficos, todos conduzem a narrativa de Guilherme como um filme de ação macabro ou um trash de terror. Até mesmo um levantamento de sobrenaturalidade foi feito: “imagens exclusivas das férias de Daniela, exatamente um ano antes de ter sido morta”. Quantas e quantas pessoas não fazem filmagens de suas férias todos os dias, hein?

O que não se pretende neste texto, por outro lado, é que diante de casos semelhantes o jornalista seja descortês. O que está sendo levantado aqui é a condução da verdade, de acordo com algo que lhe seja conveniente, isso sim é que nunca deve ser feito. Infelizmente foi o que vimos na reportagem da Record: tudo foi construído para que Guilherme de Pádua fosse perdoado, visto como alguém que superou as dificuldades, se entregou a Deus e enfrentou os seus erros. Pode até ser que seja verdade, mas essa não deve ser a única possibilidade de verdade exposta por um veículo de comunicação. Queremos que o jornalista apenas deixe as outras vozes do fato falarem por si só. Você, “jornalista”, é apenas um mediador, que deve prezar pela relativização das palavras na hora de recontar os fatos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

SOBROU PARA O SANTO...

“Tristeza, por favor, vá embora, minha alma que chora está vendo o meu fim (...)”. Numa das primeiras cenas de Salve Jorge, novela da TV Globo que estreou há duas semanas na faixa das 21h, a música “Tristeza”, de Niltinho e Haroldo Lobo, é interrompida por tiros, explosões e gritos. A protagonista (a atriz Nanda Costa) corre freneticamente com o filho pelas vielas do Complexo do Alemão em busca de abrigo entre ônibus e carros incendiados. Algumas cenas depois, o capitão do Exército (o ator Rodrigo Lombardi), que representa o mocinho do folhetim, prepara-se para liderar as forças de ocupação.

Não era preciso assistir ao capítulo inicial da trama para que os telespectadores conhecessem o desfecho do embate entre as forças militares e os traficantes. Com imagens dos noticiários de telejornais da TV Globo no período da ocupação do Complexo do Alemão, em novembro de 2010, a novela procurou fundir real e imaginário, apropriando-se do jornalismo para conferir uma chancela de credibilidade à ficção.

“Vencemos. Trouxemos a liberdade para o Morro do Alemão”, anuncia uma voz em off. O capitão-protagonista aparece erguendo o pavilhão nacional no ponto mais alto da favela, representando a retomada do território pelo Estado. Se a tristeza insistia em ficar na alma do poeta, o teleférico parece simbolizar a entrada da comunidade em uma “nova era”, tendo agora como fundo musical os versos de “Aquele abraço”, de Gilberto Gil: “O Rio de janeiro continua lindo, o Rio de Janeiro continua sendo (...)”.

Assim transcorreu o capítulo de estreia de Salve Jorge em sua abordagem ficcional sobre um episódio real de grande repercussão na história recente do Rio de Janeiro e estratégico do ponto de vista da política de segurança pública, em curso, pelo Governo do Estado. Mais do que perceber as estratégias narrativas na elaboração dos personagens ou as produções de sentido empreendidas na seleção musical de “Tristeza” e “Aquele abraço”, representando simbolicamente momentos históricos distintos na vida daqueles moradores, os primeiros capítulos de Salve Jorge formam um microcosmo sobre o modo como os meios de comunicação de massa produzem representações sociais sobre o crime, contribuindo para construção de consensos.

Múltiplas violências

Alinhados com outros discursos num processo permanente de negociação, e não de imposição, com diferentes instâncias sociais, os produtos de comunicação de massa colaboram para reproduzir o conceito de violência como unidade estática, homogênea, contrapondo-se ao discurso da ordem e da paz. Trata-se de uma violência que, na visão de Marilena Chauí (1999), é entendida pela sociedade brasileira apenas como “um acidente na superfície social”, não incluindo outras formas, tais como as desigualdades socioeconômicas, a corrupção, o racismo, a discriminação de gênero, a intolerância religiosa, dentre outras.

A estigmatização dos territórios populares é outro traço evidente tanto na teledramaturgia como no próprio discurso jornalístico. Em Salve Jorge, esses dois universos se encontram nos primeiros capítulos, conforme já mencionado. A narrativa remete a noção de simulacro, não sendo possível perceber com nitidez onde termina a ficção e onde começa o real. Assim, as favelas são caracterizadas como lugares exclusivos de violência. Representam um “território inimigo”, uma construção histórica particularmente no Rio de Janeiro desde o final do século XIX e início do XX. Esse “outro” que deve ser combatido e eliminado é o que vai legitimar soluções de força, como a ocupação do Complexo do Alemão e posteriormente a instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Como afirma Muniz Sodré (2006), “quanto maior a ameaça de catástrofe, maiores as supostas exigências de uma moral restauradora”.

Na novela, uma ilustração dessa narrativa de “guerra” pode ser percebida na cena em que o capitão-protagonista está se preparando para ocupar o conjunto de favelas. A passagem faz referência a um clássico dos filmes de ação estadunidense: tal como Rambo, interpretado por Sylvester Stallone, o herói brasileiro ajusta as vestimentas e confere o armamento pesado para enfrentar os inimigos do Alemão. Enquanto o militar saca a medalha de São Jorge, o santo guerreiro, o traficante beija o fuzil no outro lado do “front”.

O roteiro folhetinesco seguiu exatamente a cobertura da imprensa sobre o caso em que se destaca o triunfalismo da operação policial-militar. Esse aspecto já foi abordado por mim no artigo “Uma sensação de déjà vu” (http://nobecoescuro.blogspot.com.br/2010/12/midia-e-violencia-no-rio-sensacao-de.html). Importa salientar aqui que, apesar de avanços no plano político-institucional em áreas ocupadas por UPPs, a participação efetiva dos moradores no debate sobre os problemas das comunidades ainda é um direito a ser conquistado. Por enquanto, as favelas “pacificadas” não deixaram de ser caso de polícia. O diálogo envolvendo a personagem que faz a mãe da protagonista (atriz Dira Paes) é emblemático nesse sentido:

- “Você acha que essa paz veio para ficar?”
- “Só acredito nessa paz mesmo quando não estiver cercada de fuzil, porque ele mudou de mão, mas fuzil continua por aí. Pelo menos, ta mudando”
- “É. Tem que começar por algum lugar”

No mundo real, os moradores permanecem numa relação paternalista e assistencialista, dessa vez com o poder institucionalizado do Estado. Este, por sua vez, tem demonstrado extrema dificuldade em perceber os territórios populares como campo de experiências plurais e complexas.

Marcio de Souza Castilho
Jornalista e professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

RIO+20: VALE À PENA VER DE NOVO?!

​          Normalmente, a partir dos comentários que faço, é comum receber algum tipo de advertência dos meus amigos sobre o cuidado que devo ter com “teorias conspiratórias”. No mais das vezes, produzo análises que parecem indicar que “procuro pelo em ovo”, lembrando de outra pessoa querida. Em conversas recentes com aqueles a quem estimo, tenho ouvido coisas do tipo: “Depois das UPP’s, São Gonçalo está muito mais perigoso”, “A violência em Niterói já superou (e muito) a do Rio”, “Até em Maricá, antes tranqüila e pacata, a coisa está feia”. Ao dizer que se trata, antes, de uma sensação, ganho olhares que poderiam indicar coisas do tipo: onde este cara está vivendo? Então, me apresso em responde: vivo no Rio.

          ​Ao longo desses últimos anos de investigação social, tenho revelado uma predileção pela forma arguta com a qual Carlo Ginzburg se debruça sobre processos que são, especialmente, históricos. Na verdade, a História parece-me particularmente importante para entender o que acontece, seja com 20 ou 120 anos, nessa República onde os direitos continua a ser para alguns. Evidentemente, quando me refiro a espaços temporais relativamente longos, não estou pasteurizando todas as idas e vindas como se o Brasil tivesse se constituído de forma linear e sem contradições. É óbvio que há uma infinidade de rupturas dentro das continuidades que observo. Mas, o que parece ser difícil de negar é que a Rio+20 representa mais um capítulo dessa luta travada em solo tupiniquim.
          Como anunciado no site oficial da Conferência, “a Rio+20 será realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, e marcará os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio-92)” (www.rio20.gov.br). Talvez seja desnecessário mencionar que todo um aparato militar, mas igualmente político, começou a ser montado para que o evento ocorra com toda segurança, afinal, mais uma vez, os olhos de mundo estarão voltados para cá. Picardias à parte, quando no mesmo endereço é possível encontrar que o “objetivo da Conferência é a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável”, aí, longe de tranquilizar, o que cresce é a preocupação.

          ​Em 1992, já que a alusão à Rio-92 é explicita, tive a oportunidade de pesquisar, publicando posteriormente em Criminalidade no Rio de Janeiro (Revan, 2006), a relação entre o evento, a ação das Forças Armadas e o comprometimento dos meios de comunicação naquele processo “exitoso”. Na verdade, se tivesse uma breve amnésia e esquecesse o ano em que estou vivendo, seria possível acreditar que leio neste momento histórico o mesmo conjunto de informações produzidas nos primeiros anos da década de 1990. Com uma mudança significativa: lá se criticava abertamente o governador Leonel Brizola; aqui se elogia veladamente o governador Sérgio Cabral e o prefeito Eduardo Paes. Ah, é claro, e o tipo de conversa que tenho com os meus amigos. Então, voltemos no tempo. Nesse primeiro momento, na curta duração.

          ​Inicialmente, voltemos a 1992. É absolutamente curioso – até hoje, ninguém conseguiu me mostrar como é possível uma mágica dessas – que os índices de criminalidade estivessem numa elevação vertiginosa até o dia 02 de junho e recuperasse a curva ascendente a partir do dia 15 junho daquele ano, com breve intervalo (com quedas igualmente vertiginosas e às vezes total ausência de crime) entre os dias 03 e 14, coincidentemente durante a Rio-92, que contou com a efetiva presença das Forças Armadas no espaço urbano carioca. Mais curioso ainda: como a ausência de crimes na Cidade Maravilhosa, que regiões figuravam nos jornais como as que “recebiam os bandidos que fugiam de um enfrentamento com o Exército? Niterói, São Gonçalo, Maricá, Itaboraí, Baixada Fluminense. Coincidência?
          O que a Rio+20 parece trazer de singular é o amálgama de duas atualizações históricas: uma do início, outra do fim do século XX. Em 2012, o que nos parece particularmente relevante é a “ótima relação” (são os chefes do Executivo municipal e estadual que assim a define) entre o governador Sérgio Peçanha e o prefeito Eduardo Passos. A primeira atualização diz respeito... Ops! Erramos os nomes ou se trata de um ato-falho? A sintomatologia dos atos-falhos pode não ajudar a entender melhor essa irrupção. A primeira atualização, então, diz respeito às já tão faladas reformas urbanas (modernização do Porto e integração de diversas regiões da cidade) de gestão do prefeito Pereira Passos – você teve a oportunidade de passear pelo centro do Rio nos últimos tempos? – com o objetivo da difusão da civilização. Paralelamente, não podemos nos esquecer do governador (presidente àquela época) do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha, que, três anos após o fim do seu mandando, tornar-se-ia presidente da República. O desejo que parece mover o atual governador do estado parece fazer com que qualquer semelhança talvez não mereça ser tratada como mera coincidência.
          A palavra civilização pode ser apresentada como uma daquelas expressões de ouro do léxico de nossas elites. Mas, de que civilização se trata? No início do século XX, com Pereira Passos, Nilo Peçanha, Rodrigues Alves, colocar o Brasil nos trilhos da modernidade era criar estratégias para impedir “aquela gente feia, mal vestida, que a mão da providência não deu um fim, que representava o atraso...” (vide Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko). Em sua versão contemporânea, é expulsar os indesejados para fora da cena urbana, da cena política, da cena midiática. Assim, o que assistimos hoje é mais uma atualização histórica de um processo que tem início com o fim da escravidão e a instauração da República e tem se espraiado ao longo desses últimos 123 anos.

          ​Lendo a notícia no G1 de que “uma reunião realizada na quinta-feira (31/05) no Comando Militar do Leste (CML) colocou fim à crise que havia sido iniciada entre os militares e a Cúpula dos Povos depois que os organizadores do evento foram informados que parte do território no Aterro do Flamengo lhes seria retirada para possibilitar o aquartelamento de tropas e veículos do Exército e da Polícia Militar do Rio de Janeiro durante a Rio+20” (desculpe-me leitor pela reprodução um tanto extensa), tornou-se impossível não conectar 1992 e 2012 – menos pelo aniversário dos 20 anos daquela Conferência e mais pela permanência da repressão e do autoritarismo que tem orientado às ações do poder contra os comportamentos classificados como desviantes ou contra aqueles que anda não se consegue classificar.
          Se o objetivo da Conferência é de renovar o compromisso com o desenvolvimento sustentável, com respeito à natureza, à biodiversidade, ao planeta, ela é muito bem vinda. Mas, o que me deixa realmente atento é que, no Brasil, desenvolvimento sustentável pode ser ressignificado e acobertar vários eufemismos, especialmente porque nesta edição também serão contempladas “a avaliação do progresso e das lacunas na implementação das decisões adotadas pelas principais cúpulas sobre o assunto e do tratamento de temas novos e emergentes” (www.rio20.gov.br). Ao longo dos anos, tenho aprendido com Jacques Lacan e Slavoj Zizek que, se há um esforço estupendo para nos convencer de que um determinado processo não é atravessado por ideologia isso é um claro sintoma de que ela está ali manifesta. Assim, me parece significativo que a Rio+20 atraia os olhos no mundo, mas não devemos fechar os nossos para ela e para o que representa.

por Wilson Borges