Por Danielle
Brasiliense
Fui abordada por um repórter no centro do Rio em um dos dias de
manifestações pela redução do preço da passagem dos ônibus. Com microfone sem
bandeira e muito simpático, o jornalista me perguntou o que eu estava fazendo
ali na Av. Rio Branco e o que estava achando da passeata sem violência. Eu
respondi rápido gaguejando um pouco, tímida por estar dando aquela entrevista
repentina, disse que com paz tudo ficava mais tranqüilo. Essa redundância que
me ocorreu naquele momento se transformou em uma vinheta da Globo News sobre a
cobertura das manifestações. Sem querer virei frase feita que reproduz uma
ideia de que as coisas devem ser sempre ordenadas, limpas, higiênicas como pretendiam
os iluministas do século XVIII, os
moradores do Leblon e todos que vivem por esta ordem social pré-escrita pelos
ideais de civilização.
Interessante que nas primeiras edições desse vídeo exibido em diversos
programas da Rede Globo, antes da minha fala tinha uma narrativa sobre a linda
passeata, onde todos usavam branco. Só que no decorrer deste vídeo com outros
depoimentos sobre a tal paz vem a parte da violência dos denominados vândalos
que invadiram a Assembléia Legislativa naquela noite. Toda a passagem clean do
vídeo termina no horror, na desordem. É como se tudo estivesse indo muito bem
até que vândalos, sujos e asquerosos surgissem para atrapalhar aquela
branquitude juvenil com rosas na mão, educada e comportada que queria apenas
reclamar na rua os seus direitos. E tem sido assim: “um grupo pequeno, uma
minoria de vândalos”. Desde que as manifestações começaram no mês de junho
ouvimos esse tipo de frase nas diversas mídias e repetidas vezes também em
declarações dos governantes. “Vândalos atrapalham o lindo movimento dos
jovens”, dizem ainda eles repetidas vezes. O discurso do vandalismo em um
primeiro momento se fez pronto para abafar os protestos da sociedade que foi à
rua reivindicar seus direitos. Nenhuma novidade de enquadramento narrativo
midiático, pois me parece que quando se trata a temática da violência, a mídia
procura primordialmente demarcar territórios de higiene social dividindo assim,
o mundo da ordem e da desordem. O limpo de um lado e o sujo do outro. Assim é
muito fácil, não é verdade? Aqui estão os baderneiros e ali os de paz. Que
construção textual fácil e ingênua sobre o mundo complexo em que vivemos!
Mas esse é o discurso elitista que conhecemos e ultrapassa séculos em
nossa memória. Quando as operações de ordem são feitas nas favelas, fala-se em
caça aos bandidos e como sabemos, sobra também para os outros moradores vistos
como parte desta sujeira que no imaginário da “cultura do esfregão” precisa ser
higienizada, anulada. Quando se trata de colocar ordem no asfalto, os impuros
são os vândalos, baderneiros. Deste modo, a pergunta que não quer calar é:
quando vamos entender que esse projeto civilizador de limpeza não nos cabe
mais? Por favor, chega deste discurso que incentiva o pensamento da impureza e consequentemente
da exclusão. Basta! Basta de achar que o mundo e a sociedade são apenas
divididos em dois aspectos, o sujo e o limpo. Até quando vamos viver dos
projetos executados pela psiquiatria do século XIX do excesso de ordem, quando
se dizia que a loucura deveria ser exportada para longe da terra fértil,
isolada em um barco, no qual a água límpida protegia a terra distante da
impureza.
Não adianta mais viver apenas pela
defesa do sofrimento, às vezes, sofrer, inclusive, com pimenta nos olhos, gás
lacrimogênio e porretes na cabeça é a solução. Defender-se do sofrimento
significa gerar mais sofrimento e contribuir com discursos de ordem que
enfatizam mais ainda o lugar da desordem. O que é desordem? Viver na favela,
vaiar a polícia covarde, quebrar com revolta as vidraças dos prédios públicos,
queimar pneus, fazer revolução contra uma maldita e arbitrária ordem? Parem de
não querer sofrer, porque sofrimento é a alma do caos e sem o caos não há
revolução, transformação e vida. Não se defendam do sofrimento e ensinem aos seus
filhos que sofrer também é parte da vida. Chega dessa maluquice de felicidade a
qualquer preço. Não ajuda e isso não é viver.
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