terça-feira, 7 de dezembro de 2010

SENSAÇÃO DE DÉJÁ VU

A intensa cobertura midiática nos últimos dias sobre a violência no Rio de Janeiro mostra a disposição dos meios de comunicação em se autorreferenciar como coautores no combate ao crime organizado, atuando ao lado das forças policiais subordinadas ao poder político. O modo como jornais e TVs construíram a história do cerco policial-militar na Vila Cruzeiro e no Complexo do Alemão é indicativo dessa intenção. Um breve resgate histórico ajuda a colocar por terra o sentido de caráter “inédito” da operação. Do mesmo modo, também não é a primeira vez que os órgãos noticiosos evocam um lugar de poder na cobertura sobre segurança pública em momentos de crise. A ostensiva repercussão sobre as ocupações da semana passada remete a outro acontecimento emblemático no histórico de violência na cidade e sensível, particularmente, para o campo jornalístico: o sequestro, tortura e execução de Tim Lopes, em junho de 2002. Apesar de contextos históricos diferentes, as duas coberturas ilustram permanências e continuidades quanto aos trabalhos de memória e ao emprego de estratégias narrativas.

Nos dois casos, a imprensa constrói o discurso jornalístico com base em características que apontam para as dualidades entre o herói e o vilão, o bem e o mal, a impunidade e a esperança. Todos podem acompanhar o enredo, familiarizar-se com o trabalho das forças policiais em prol da libertação das comunidades. Encampam, sem a devida problematização, a versão estatal da ocupação ao manter, notadamente as Organizações Globo, diversas autoridades da Segurança Pública em seus estúdios durante horas a fio. Enquanto isso, uma grande operação de cerco transcorria no subúrbio carioca. Se a cobertura reforça esses aspectos mais afetos à espetacularização e ao sensacional, ignora fontes relacionadas às lideranças comunitárias que poderiam contribuir para o debate. Omite igualmente a complexidade e as especificidades da criminalidade no Rio de Janeiro, onde as fronteiras entre policiais e traficantes estão misturadas. Prova disso são o fenômeno das milícias e a incorporação, no vocabulário cotidiano, de expressões como “arrego do tráfico”, atos de suborno para a manutenção de atividades ilícitas com a luxuosa conivência de quem deveria combatê-las.

Em episódios como os da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão, a ação dos meios de comunicação é tão reativa quanto o combate ao narcotráfico no Rio de Janeiro. O que podemos constatar é que ela não apenas informa sobre o crime, mas busca legitimar-se ao reafirmar que sua atuação é imprescindível para a garantia da legalidade da operação. Não que haja discordância quanto ao ponto específico, mas não podemos ignorar que tais comentários conferem força ao discurso dos grupos de comunicação.

Os dois episódios têm como traço comum o triunfalismo da operação policial-militar que parece instaurar uma nova fase na política de segurança pública do Rio de Janeiro. No dia seguinte à “Batalha do Alemão” – como O Globo se referia às vésperas da ocupação naquela comunidade – manchetes, títulos, subtítulos e intertítulos destacavam no dia 29/11/2010: “O Rio mostrou que é possível”, “Cabral ressalta fato histórico”, “Vitória e operação sem precedentes” e “O Rio é nosso”, ainda que o resultado da operação, em relação ao número de prisões, não seja compatível com o aparato bélico e a repercussão que levou televisões e jornais a interromperem a programação e produzirem cadernos especiais. No caso Tim Lopes, era a captura de Elias Maluco que representava, nas narrativas jornalísticas, um momento fundador da segurança pública no Rio. Maluco era o líder do bando, último foragido naquela ocasião e acusado de ser o mandante da execução do repórter da TV Globo.

A narrativa obedece assim a um esquema percebido em outros dramas noticiosos. Mudam as datas e os personagens centrais. Permanecem os códigos simbólicos que são reconhecidos pelo público. Esses mecanismos discursivos podem ser evidenciados também na prisão do traficante Eliseu Felício de Sousa, o “Zeu”. Envolvido na morte de Tim Lopes em 2002, o criminoso foi detido na mega-operação no Complexo do Alemão há poucos dias. A captura de “Zeu” ganhou destaque na cobertura de O Globo e nos comentários de apresentadores da emissora, deixando transparecer uma vontade interdita do grupo comunicacional de vingar a morte do seu profissional.

As reportagens mantêm uma unidade dramática e exercem uma tensão narrativa que tende a controlar a capacidade de reação do público. As matérias se sucedem como se o jornal ou a cobertura de TV estivessem preparando o terreno para o grande desfecho. Sequencialmente, essas foram as manchetes de O Globo: “Intenso tiroteio entre Exército e tráfico abre Batalha do Alemão” (27/11/2010), “Bandidos não aceitam ultimato e polícia decide invadir Alemão hoje” (28/11/2010) e “O Rio mostrou que é possível” (29/11/2010). É interessante notar, portanto, como a dimensão temporal tem forte presença nos relatos jornalísticos.

Assim, as notícias vão oferecendo uma sensação de harmonia e tranquilidade frente aos fenômenos que fogem às regras normativas da sociedade. Os jornalistas, do mesmo modo, reafirmam valores morais através da punição daqueles que se afastam dos princípios dominantes na sociedade. Nos dois casos, o jornal destaca o sentimento de esperança que envolve a sociedade. Se em 2002 a matéria “Linho, traficante da Maré, é próximo alvo” (20/09/02) mostra o empenho das autoridades, embaladas pelo êxito da operação, em prender o então chefe do Terceiro Comando após a prisão de Elias Maluco, agora a reportagem “Se chegamos ao Alemão, chegaremos à Rocinha” (29/11/10) fornece a senha para o alvo da próxima mobilização das forças de segurança.

Todo este conjunto narrativo ajuda a fornecer pistas para entender, sob a ótica dos estudos da comunicação, o significado da intensa repercussão midiática sobre a violência no Rio de Janeiro. Ao registrar o episódio como um momento fundador contra o narcotráfico, a cobertura também aponta para um processo de legitimação da imprensa como autoridade interpretativa no campo social. A recente crise, em outras palavras, é formadora de autoridade.

* Marcio de Souza Castilho é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor da Universidade Federal Fluminense

Um comentário:

  1. Gostei muito da idéia e dos textos. Acho que é importante fazermos um contraponto, mostrarmos um pouco de lucidez em meio a este circo e refletirmos criticamente sobre o que está acontecendo. Ao mesmo tempo, penso que temos que sempre ter muito cuidado com a manutenção de uma visão distante e acadêmica dos fatos. Caímos nesta armadilha o tempo inteiro. E vi que vocês tiveram este cuidado, pontuando que é uma questão delicada e direcionando o blog extamente neste sentido: em pensar nas pessoas que ficaram no beco. Hoje vivo com alguém que morou no Jacaré (uma das comunidades atingidas nesta confusão) e ainda trabalha lá. Quem vive a opressão da violência no dia a dia (seja da polícia, dos traficantes ou da falta de uma série de direitos básicos...) estabelece uma outra relação com os fatos, e é nossa tarefa tentarmos encontrar um espaço de reflexão que não se distancie desta realidade. E, principalmente, também não veja a população destas comunidades como alienada e desprotegida, totalmente desprovida do acesso à informação e de consciência crítica. Aliás, muito perspicaz a observação no texto do Márcio, sobre o fato de a imprensa deixar de fora do debate as lideranças comunitárias. Assim como também pontuar a complexidade da criminalidade no Rio de Janeiro e a mistura entre as fronteiras policiais e marginais.
    Parabéns pelo blog e pela abordagem.
    Bjs,
    Geisa Rodrigues

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